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domingo, 20 de novembro de 2011

O Elo Homem-Animal e a Lâmina de Ockham



Não é uma história inédita - faz lembrar o famoso caso de Hachiko - mas esta passa-se em Portugal nos dias de hoje: um cão que acompanhou a dona na sua última viagem ao Centro de Saúde e que não arreda pé desde então. Com uma música delicodoce a acompanhar, como convém neste tipo de histórias a puxar ao sentimento, a reportagem visa mostrar como o elo homem-animal (Human-Animal Bond) pode ser tão forte que ultrapassa as fronteiras da própria vida.

Gostava, porém, de desafiar esta explicação, empírica e complexa, e aplicar a Lâmina de Ockham (Occam's Razor) para propor uma outra explicação mais simples para este tipo de comportamento. Sabemos que o cão tinha o hábito de fazer este percurso e tudo indica que se estabeleceram padrões comportamentais que permitiram ao animal fixar o que fazer a seguir. Entre estes comportamentos adquiridos estaria o regresso a casa, assim que a dona saísse do Centro de Saúde. Não será que, ao invés de "sentir a falta" da dona e por isso se recusar a abandonar o local, o animal está simplesmente bloqueado pela ausência do estímulo que lhe indica que chegou o momento de voltar para casa? Isto é, quem nos garante que a permanência no local é um acto consciente e não apenas uma resposta inconsciente à ausência de um estímulo?

P.S. Podem ficar os animalogantes descansados já que o cão foi adoptado por alguém que viu a reportagem.

8 comentários:

  1. De facto por vezes estamos tão habituados a "humanizar" os animais que ficamos temporariamente (ou às vezes permanentemente!) cegos à razão e à lógica. Até agora, nunca tinha pensado nessa possibilidade. No entanto, confesso que depois de ouvir tantas histórias de cães que acabam por morrer por não quererem abandonar a campa dos donos (à tempos li também um artigo que falava de uma égua no Brasil que depois do dono morrer ia todos os dias ao cemitério) não me custa acreditar que este cão esteja mesmo com "saudades" da dona. Até porque estes casos não acontecem só nas relações animal/pessoa mas também entre animais - deixam de comer, apresentam comportamentos desviantes, "depressão" etc perante a perda de um membro do seu circulo. Se isso tem a ver com "saudades" ou simplesmente um período de adaptação a uma nova realidade é algo que podemos questionar.

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  2. A explicação colocada tem a sua lógica, pois tal como quando mostramos uma lata de comida a um animal e ele se dirigi para a taça onde come ou quando mostramos a trela, ele se dirige para a porta, seria possível o animal não sair do local pelo simples facto de não ter o estimulo certo, isto é, o da dona a sair do centro de saúde..
    Mas se fosse esse o caso, como explicaríamos o caso do Husky na Polónia? Para quem não sabe da historia, este animal foi deixado e entregue a mãe do dono, pois este teve de emigrar. Desde então o animal foge todos os dias para o local onde viu pela ultima vez o dono.. Este acontecimento passou-se apenas uma vez, por isso este comportamento não pode ter sido aprendido pelo animal tal como aconteceu no outro caso..

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  3. Cara Filipa:

    Ouvi falar desse caso e de outros (que agora os noticiários andam particularmente atentos a histórias semelhantes). Mas então qual será a diferença, em termos de bem-estar entre a explicação do comportamento aprendido que eu ofereço e aquela que parece sugerir do Husky da Polónia? E já agora porque é que estes fenómenos atraem tanta atenção mediática?

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  4. É verdade que tendemos a fazer uma leitura humanizada do comportamento animal, em especial quando estão envolvidas situações onde se espelham as emoções (por exemplo os cuidados maternos com crias -“há mulheres que não cuidam tão bem dos seus filhos”- ou a perda de alguém querido – “está tão triste, coitado do cão, sente a falta da dona”). Fazer uma leitura é interpretar uma linguagem, mas como estudá-la, quando essa linguagem se move em terrenos pouco claros e definidos até para nós próprios? Como ler um comportamento animal sem recorrer ao conceito de consciência animal? Como explicar estados emocionais que conduzem a determinados comportamentos sem haver a interpretação reducionista do estímulo-resposta à maneira de Pavlov?

    Julgo entender aqui a razão da aplicação da “lâmina de Ockham”. A simplificação da abordagem de leituras empíricas segundo o método científico, de modo a tornar acessível o conhecimento crítico (que é a leitura da ciência) a todas as pessoas. É preciso separar os objectos (o cão é o cão, o homem é o homem); é preciso observar detalhadamente cada parte em separado e só depois, à luz da análise rigorosa, estabelecer os elos de ligação entre as partes. Como a situação referida ocorre após o desaparecimento de uma das partes da relação animal/humano, a leitura deste episódio não passa de uma especulação, de uma interpretação baseada nas expectativas dos observadores. Não pode haver aqui a verdade científica, não existe uma coerência na linguagem da ciência. Mas o facto é que aquele cão manifestou o comportamento relatado num contexto específico. Sabemos que os animais têm emoções e sabemos que, tal como nós, têm respostas (conscientes ou inconscientes) a estímulos. Mas não podemos ter a certeza sobre a verdade das suas motivações. Não podemos afirmar que o cão realizou um acto consciente ou que respondeu de forma inconsciente à falta de um estímulo.

    Ocorre-me citar Franz Kreuze, no prefácio do livro “O futuro está aberto” de Karl Popper e Konrad Lorenz, Ed. Fragmentos (2ªEd, 1990):
    “…este universo não é um universo de confirmação de verdades, mas um universo de refutação de erros. Todavia o universo existe, e também existe a verdade; a única coisa que não pode existir é a certeza sobre o universo e sobre a verdade É isto o realismo crítico.”

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  5. Cara Maria da Paz:

    O seu comentário é extremamente interessante, na medida em que nos traz para o domínio da fenomenologia (http://plato.stanford.edu/entries/phenomenology/). Na impossibilidade de apreendermos a experiência subjectiva do outro, resta-nos a nossa interpretação, também ela subjectiva, desse mesmo fenómeno. A visão que apresenta parece aproximar-se do monismo fenomenológico já que não parece prever a possibildade de, através da ciência, descodificarmos a consciência animal. E ocorrem-me vários autores que dedicaram a sua vida a esta causa - do etólogo Marc Bekoff à filósofa Mary Midgley, que discordariam consigo.

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  6. No caso do animal que ficou a porta do centro de saúde penso que não se pode falar em bem-estar, pois este animal sem abrigo, alimento e amor não pode certamente estar bem. No outro caso, é certo que o animal tem um dono que trate dele, que o mime, tem um local onde dormir, mas se falarmos em bem-estar emocional o animal encontra-se tão mal como o outro. Pois em qualquer dos casos, as “cinco liberdades” estao a ser violadas. Quando referi este caso, foi apenas um exemplo para mostrar que na minha opiniao o facto de o cao se encontrar no centro de saude e não ter saido de la, relacionava-se com o facto de estar a espera da dona e com esperança que esta voltasse e não devido a falta de um estímulo. Tal como na última noticia que saiu, em que o animal ficou no local onde o dono o abandonou, na esperança de que este voltasse.

    Em relação ao facto de este tipo de comportamento ter sido bastante comentado pelos Media nos ultimos tempos, penso que se deve principalmente as audiências que este tipo de notícia traz, pois é impossivel não ficar comovido com um animal que tanto amor e lealdade tem ao dono. Claro que bastou apenas uma história deste tipo virar noticia para que muitas lhe seguissem o exemplo. Com isto não quer dizer que este tipo de informação não seja importante tanto para humanos como para animais. A notícia de que o animal tem verdadeiramente sentimentos e que sente tal como o ser humano pode ser benefico, na medida em que pode levar a que humanos mudem a sua maneira de pensar em relaçao a estes animais, fazendo com que haja menos maus tratos e mesmo menos abandonos. Cada vez mais os animais são vistos como um elemento da familia e não só o seu animal de estimação ou um animal adquirido para um determinado fim, e penso que estas histórias contribuem para isso.

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  7. Quando vi esta notícia também me interroguei sobre o porquê de o cão estar ali. Será que é mesmo saudades da dona ou simplesmente lhe falta o tal estímulo para seguir em frente?

    É possível que seja apenas a falta de um estímulo porém acho que não ou, pelo menos, não apenas isso. Não podemos rejeitar já o facto de eles poderem sentir emoções, mesmo que pensemos que essa opinião provenha de uma visão subjectiva da situação. Afinal, esta questão da emoção nos animais pode ser como a questão da inteligência; inicialmente pensava-se que apenas o ser humano era capaz de pensamento inteligente e agora sabe-se que não.

    Também não nos podemos esquecer que os animais são, para além da espécie, indivíduos. Nem todos os indivíduos expressam este comportamento quando os donos morrem porque estão sujeitos a uma vida diferente, com donos diferentes, em sítios diferentes… Têm uma história individual diferente que pode levar a que sintam em intensidades diferentes e que demonstrem também de forma diferente a falta do dono.

    O facto de poderem sentir emoções aplica-se especialmente ao cão, não só por ser um animal filogeneticamente próximo de nós (mamífero) mas também porque é um animal social e domesticado que passou grande parte da sua vida do nosso lado. Se partilhamos com eles doenças físicas e psicológicas, se eles aprenderam a interpretar todo um leque de sinais que fazemos, acredito que seja possível partilharmos também emoções (não querendo dizer com isto que outros animais não possam ter emoções também).

    Também não podemos excluir o aparecimento de novos estímulos, como o da comida. Será que se as pessoas que estiveram no local não alimentassem o animal, ele não teria acabado por ir embora? Mas se fosse apenas isso, como explicaríamos o caso do husky? Ou o caso do “Hachiko” para quem viu o filme? Eles tiveram a oportunidade de começar uma vida nova, sujeitos a situações diferentes, com estímulos diferentes (com comida também) mas mesmo assim voltaram ao local.

    Pessoalmente, acho que ainda não temos conhecimento suficiente sobre esta situação para excluir qualquer hipótese. Acredito que seja mais provável o facto de os animais permanecerem naqueles locais porque sentem a falta do dono ou, pelo menos, sentem uma qualquer emoção que lhes prendem ao local onde viram pela última vez o seu dono, mas não ponho de parte que seja de facto a ausência de um estímulo (ou o posterior aparecimento de novos estímulos) que os leve a ficar ali.

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  8. A questão de consciência é tão estimulante como é perigosa...

    1. A lâmina do Ockham é fundamental para a ciência. Para a area de comportamento animal, ainda temos o princípo do Lloyd Morgan: "In no case may we interpret an action as the outcome of the exercise of a higher psychical faculty, if it can be interpreted as the outcome of one which stands lower on the psychological scale". E reconheço que não estamos sempre a ter o devido cuidado com este princípio na discussão de bem-estar animal. Por outro lado temos também que ter o cuidado com a lâmina, pois ela corta.

    Na sua vida até então o cão não tem, de certeza, sido guiado apenas por simples correspondências estímulo-resposta. Foi capaz de aprender comportamentos com alguma complexidade, mostrou flexibilidade ou plasticidade no seu comportamento. Por isso, não me parece plausível que ficou agora preso na ausência do estímulo "dona voltar a aparecer". Alias, não parece que o cão tem passado sentado fora do centro de saúde, o filme fala de ele voltar a vir. E rapidamente voltou a ter outras razões para vir, foi acarinhado por outras pessoas no centro de saúde.

    A descrição mais neutra e plausível que a mim me ocorre é que quando um conjunto de comportamento deixou de levar à consequência positiva (com a companhia humana habitual voltar para a casa com abrigo e comida), o cão aprendeu outro comportamento com consequência positiva (ir para o centro de saúde e ter com a nova companhia humana que fornece abrigo e comida).

    Para tirar algum outro tipo de conclusão, precisavamos de saber muito mais sobre o comportamento do cão entre o dia em que a dona deixa de aparecer na saída do centro de saúde e o dia em que já se tinha estabelecido como habitante do jardim do mesmo.

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