Na primeira entrevista desta serie, falamos com a etologa Leonor Galhardo sobre o curso que ela dirige e ainda sobre o cenário atual de bem-estar animal em Portugal.
Bom dia Leonor, estás a planear a Sessão de Encerramento da primeira edição da Pós-Graduação em Comportamento e Bem-Estar Animal no ISPA em Lisboa, não é?
Sim, será no dia 2 de Julho, no ISPA.
Podes contar um pouco mais sobre este curso?
Trata-se de um curso geral em Comportamento e Bem-Estar Animal que pretende dar formação em aspectos biológicos, sociais e éticos relacionados com o conceito de bem-estar animal, ao mesmo tempo que aborda aspectos particulares de áreas bem definidas como a pecuária, incluindo a aquacultura, os animais de companhia, os animais selvagens e o uso de animais para fins experimentais. O curso tem uma acentuada componente prática com várias visitas de estudo e trabalho efectuado pelos alunos. Destaco em particular o Projecto em Bem-Estar Animal que é uma unidade curricular onde os alunos realizam um projecto na sua área de interesse. Este projecto é desenvolvido ao longo de 10 meses sob a nossa orientação e constitui uma oportunidade para aprofundar conhecimentos ou resolver problemas decorrentes de actividades profissionais ligadas a animais. A segunda edição deste curso irá também incluir um módulo em didáctica do bem-estar animal e outro em interacções humanos-animais.
Quais são os alunos e as suas motivações par a procurar formação especializada nesta área?
Temos alunos de formação diferente, mas em particular médicos-veterinários. Na primeira edição do curso tivémos também biólogos, zootécnicos e enfermeiros veterinários. Pensamos que este curso pode também ser de grande interesse para professores, bem como para psicólogos interessados nas relações entre humanos e animais. As motivações dos nossos alunos são a necessidade de aprofundar conhecimentos científicos e técnicos em comportamento e bem-estar animal e poderem adquirir formalmente competências para trabalhar nesta área, dando formação ou de alguma forma esteja ou venha a trabalhar com animais na área da inspecção, maneio, aplicação de legislação, etc.
Haverá uma nova edição do curso no ano lectivo de 2011/12?
Sim, já temos várias pessoas interessadas no curso e portanto pensamos que existe grande probabilidade de o re-editar no próximo ano lectivo.
Que papel têm, na tua opinião, eventos de formação profissional para promover e melhorar o bem-estar animal em Porugal?
Tem um papel fundamental. Na minha opinião, em qualquer área em que os animais sejam utilizados por humanos, são as decisões que tomamos acerca da sua manutenção, a forma como os manuseamos, a competência com que os compreendemos e manipulamos o seu comportamento que ditam as principais directrizes daquilo que pode ou não constituir o bem-estar dos animais em causa. Por isso é imprescíndivel que haja formação profissional e conhecimentos nesta área em qualquer sector do uso de animais. Para além disso é já uma exigência das entidades competentes que as pessoas tenham formação teórica e prática para manipular animais por exemplo na pecuária e na e investigação.
Leonor, foste provavelmente a primeira portuguesa a concluir formação superior em bem-estar animal e trabalha com esta questão em Portugal há mais do que uma década. Como estão os animais em Portugal – bem ou mal? Melhor ou pior do que há 15 anos?
Embora eu ache que os animais em Portugal precisam da nossa intensa preocupação e cuidados, a sua situação melhorou em alguns aspectos quando comparando com há 15 anos atrás. Antes de dar exemplos de mudanças positivas e situações em que penso que não houve evolução nenhuma, gostaria de começar por referir que a protecção dos animais é uma atitude social de carácter civilizacional e como tal exige tempo; é lenta; atravessa gerações… Uma das áreas em que pouco ou nada mudou nos últimos 15 anos, apesar do carácter estruturante que tem para a protecção dos animais em Portugal, foi o conteúdo e a aplicabilidade da Lei de Protecção dos Animais (92/95). Precisamos de um formato legal que permita uma protecção real dos nossos animais - maus-tratos, negligências, abusos, e outras agressões que causam grande sofrimento praticamente não são ainda penalizadas em Portugal. Na área da pecuária, em função da evolução da legislação houve vários como progressos, embora muita fiscalização e formação técnica seja necessária para atingir níveis aceitáveis de bem-estar animal. Exemplos de requisitos que melhoraram na pecuária: alteração das baterias de galinhas poedeiras para sistemas melhorados; proibição das celas individuais para porcas reprodutoras e melhoramento dos sistemas intensivos para suínos; identificação, controlo e fiscalização do transporte dos animais para o matadouro; maior preocupação com o atordoamento no abate. Na investigação, há um lento progresso no sentido do registo e pedido de autorização para levar a cabo experiências feitas em animais. Actualmente, muitas centenas de investigadores fizeram cursos para se tornarem competentes no manuseamento e redução do sofrimento de animais em experiências. Há 15 anos atrás não havia qualquer espécie de controlo nesta matéria. Na área dos animais de companhia continua a não haver dados oficiais que nos permitam conhecer taxas de abandono e suas causas. Mas aparecem agora pessoas interessadas no assunto (no nosso curso, foi feito um trabalho neste sentido) e, de qualquer forma, o sistema de identificação obrigatório e a base de dados que foi criada permitem um controlo muito diferente do que existia há 15 anos, que era nulo. Não obstante, muito há para fazer para tornar os donos dos animais mais responsáveis e a base de dados de identificação mais operacional. Na área dos animais selvagens, também julgo ter havido uma evolução, com os parques zoológicos hoje muito mais preocupados do que antes com aspectos relacionados com o enriquecimento ambiental e com o passar para o público mensagens de conservação. Há 15 anos atrás os animais saíam destas instituições para circos, colecções privadas, etc. e hoje um grande número de parques nem por sombras o considera fazer, até porque se tornou proíbido. Acerca de todos estes exemplos quero reforçar a ideia de que há indicadores de claras melhorias embora ainda haja muito por fazer. Para concluir, gostaria de lembrar que há 15 anos atrás falar de bem-estar animal em certos círculos provocava risos ou atitudes de desmerecimento do assunto. Hoje, as pessoas estão em geral mais conscientes de que os animais são seres que sentem, capazes de pensar, raciocinar, fazer as suas escolhas, alimentar desejos, sofrer e ter prazer. Essa consciência humana muda tudo em relação à nossa atitude de base.
Bem-estar animal é uma questão com uma clara conotação política – na resposta anterior falaste de leis, fiscalização e controlo, todos assuntos que têm a ver com política. Assunção Cristas acabou de tomar posse como a nova ministra de Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento. Que assuntos consideras mais urgentes para esta nova responsável máxima pelo bem-estar animal em Portugal?
Os assuntos mais urgentes são sem dúvida a operacionalização de uma Lei de Protecção dos Animais, a formação técnica adequada de todas as partes envolvidas (pessoas que trabalham directamente com animais; gestores e inspectores de actividades envolvendo animais) e a operacionalização de bases de dados oficiais para melhorar os sistemas de controlo. Em relação à formação técnica, podemos ter a ideia de que um sistema extensivo de animais de produção é melhor do ponto de vista de bem-estar animal do que um sistema extensivo. Em larga medida, é verdade. Mas, na prática, qualquer dos dois pode ter enormes problemas dependendo da forma como o maneio dos animais é feito. E isso exige formação, conhecimentos adequados e especializados. Quanto às bases de dados oficiais, penso que é necessário operacionalizá-las melhor para que elas possam ser usadas de forma mais eficiente no controlo e na caracterização do perfil das várias áreas em causa. Precisamos com urgência de uma história, de indicadores de bem-estar animal, de uma forma consubstanciada de sabermos como estamos, de onde viemos, e para onde conduzimos os destinos do bem-estar animal em Portugal.