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segunda-feira, 26 de outubro de 2015

"Cientista fotografou pela primeira vez ave que não era vista há mais de 50 anos. E depois matou-a."

É mais ou menos nestes moldes que tem sido contado o episódio protagonizado por Christopher Filardi, ornitólogo do Centro de Biodiversidade e Conservação do Museu Americano de História Natural, numa expedição às Ilhas Salomão, um incidente que contudo requer uma análise mais atenta. 

Casal de A. bougainvillei
Fonte: Wikipedia Commons
A ave em questão é um Actenoides bougainvillei, chamada Mbarikuku para os indígenas e Moustached Kingfisher em inglês (em português será qualquer coisa como "Martim Pescador de Bigode" ou "Guarda-rios de Bigode"), sendo endémica da ilha de Guadalcanal e estando classificada pelo IUCN como "vulnerável".
Esta foi a primeira vez que um exemplar vivo de um macho foi fotografado, tanto que a imagem que neste momento ainda ilustra a sua entrada na Wikipedia é um desenho de 1905 de um casal de uma variedade próxima, pertencente à mesma espécie, mas de uma outra ilha. É o próprio Filardi, aliás, que o descreve como uma "ave fantasma", no seu blog de campo, onde as circunstâncias da sua descoberta e captura - proeza que tentava alcançar há 20 anos - são relatadas.  


A origem da polémica centra-se no facto de, após a captura, os cientistas terem eutanasiado a ave (não sei através de que método) para a integrarem na colecção do museu. Segundo os mesmos, isto permite que o estudo da espécie se prolongue e aprofunde além do número limitado de dias da expedição, permitindo recolher informações sobre o seu genoma, anatomia, dieta, fisiologia, plumagem ou a exposição a substâncias tóxicas.

Esta decisão parece baseada numa perspectiva de "respeito pela natureza" onde o valor de um animal não-humano, como indivíduo, se dilui face ao da sua espécie e ecossistema, uma perspectiva que é transparente  nas declarações do cientista.

Filardi, momentos antes de eutanasiar a ave para a adicionar
à colecção de espécimes do Museu Americano de História Natural

O "guarda-rios de bigode" em questão. 
Mark Bekoff (que esteve em Portugal aquando do primeiro congresso em alternativas da SPEdH), declarou a este respeito que "Killing 'in the name of conservation' or 'in the name of education' or 'in the name of whatever' simply needs to stop", uma opinião profundamente influenciada pela sua conhecida perspectiva afeita aos direitos dos animais, stricto sensu, e que se centra no valor e dignidade invioláveis e inalienáveis de cada animal, como indivíduo. Mas Bekoff é conhecido pelas suas opiniões mais radicais, pelo que esta não constitui surpresa.


Esta prática tem, no entanto, detractores mais insuspeitos no seio da comunidade científica, como patente neste artigo de opinião na revista Science. Já Filardi, na sua resposta às críticas de que foi alvo, assegura que a decisão tomada no local não foi tomada de ânimo leve, e que teve por base o número de indivíduos que conseguiram estimar (~4000 indivíduos, um número que consideram robusto para uma ave insular), através de um método que, a julgar pelos comentários à sua resposta, não é consensual.

A questão, assim, impõe-se: esta prática não poderá constituir, em si, uma ameaça à preservação da espécie? Para lhe dar resposta pedimos a opinião do Prof. João Alexandre Cabral, biólogo/ecólogo, professor associado na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), coordenador científico do Laboratório de Ecologia Aplicada da UTAD e investigador no CITAB, e que aqui partilhamos:

"Partilho da perplexidade da generalidade das opiniões expressas a propósito desta controvérsia, particularmente no que respeita a este bizarro e extemporâneo ímpeto coleccionista, que nos faz regressar aos paradigmas de um passado "Vitoriano". À primeira vista, parece ser um acto completamente injustificado e negligente, que encerra uma potencial ameaça para o estado de conservação (desconhecido) das populações  de Guarda-Rios de Bigode. Considerando que quase nada se sabe sobre os requisitos ecológicos desta espécie, do seu efectivo e condição dos seus indivíduos, bem como sobre o nível de ameaça aplicável às respectivas populações, então estamos perante um indesculpável acto de irresponsabilidade, incompatível com uma investigação que se presume ética e respeitável."

Eu tendo a concordar. 

domingo, 18 de outubro de 2015

"Experimental Design Assistant" - Melhorar a fidedignidade dos estudos com animais!

Numa tertúlia sobre ética e experimentação animal na qual participei como convidado há uma semana,  juntamente com Luísa Bastos (SPEdH e IBMC-INEB), houve um ponto em que concordámos: há muitos estudos em animais de má qualidade, e que não produzem dados fidedignos, por falhas fundamentais no seu desenho experimental e uma incorrecta análise e interpretação estatística dos resultados. 

"When mice mislead" (Fonte: Science)
Isto tem sido particularmente notório no teste de eficácia de drogas experimentais, levando a que um grande número de ensaios clínicos seja baseado num corpo de 'evidência' distorcido, onde o efeito terapêutico é sobre-estimado. Assim, os ensaios em humanos - que habitualmente seguem padrões de exigência bastante superiores - não reproduzem os promissores resultados previamente obtidos em animais, muito provavelmente porque estes eram falsos-positivos logo à partida. 

O resultado? Milhões (ou mesmo milhares de milhões) de euros desperdiçados e milhares de animais usados sem real benefício científico e biomédico, para não falar das centenas de pacientes (e  famílias) envolvidos em ensaios clínicos de drogas cuja eficácia, na verdade, nem em ratinhos tinha sido devidamente comprovada. 

Evidentemente, esta questão coloca questões da maior importância científica, médica, ética e até financeira, e poderá pôr em causa a "licença social" dada aos cientistas para usarem animais em investigação biomédica.

O ALS Therapy Development Institute re-testou, seguindo elevados padrões
metodológicos, mais de 50 drogas aparentemente promissoras em animais
mas que tinham falhado em ensaios clínicos. A conclusão foi que, afinal, o
seu efeito terapêutico tinha sido originalmente muito exagerado (Fonte: Nature)

Tendo o(s) problema(s) que levam a que muitos dos resultados científicos publicados não sejam reprodutíveis sido devidamente identificados, cabe à comunidade científica resolvê-los da melhor maneira, envolvendo investigadores, institutos de investigação, revistas científicas, agências de financiamento e reguladores, entre outros 

Uma nova ferramenta para auxiliar os investigadores a desenhar as suas experiências de modo a obter resultados sólidos, fidedignos e reprodutíveis vem da parte da comunidade dos 3Rs, nomeadamente do NC3Rs: O Experimental Design Assistant (EDA)

Esta ferramenta é disponibilizada gratuitamente on-line, e desempenha as seguintes funções:

- Construção de uma representação visual (em diagrama) das experiências
- Feedback e conselhos sobre o desenho experimental proposto
- Suporte para randomização, "análise-cega" e cálculo estatístico do tamanho da amostra necessário
- Informação prática para melhorar o desenho experimental
- Maior transparência sobre o desenho experimental, permitindo a partilha e discussão do plano com colegas e colaboradores. 

Pode esquematizar desta (ou de outra forma) o seu estudo,
e o EDA vai dar sugestões para o melhorar. 
Michael Festing escreveu há um par de anos que ninguém nasce sabendo delinear e analisar experiências científicas. Contudo, com o crescente número de recursos e ferramentas à disposição dos investigadores para colmatar essa falha, é cada vez mais difícil haver desculpas. 

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Faz parte da mudança


No momento, a palavra “mudança” faz-me pensar mais nas caixas no meu gabinete do que em hábitos alimentares, e foi de facto a arrumação associada a iminente mudança de lugar (IBMC está a trocar o Polo de Campo Alegre para o Polo de Asprela e as novas instalações do novo i3S) que me fez pegar novamente no folheto “Faz parte da mudança”, produzido pela Associação Vegetariana Portuguesa.

Entregaram-me o folheto em maio, quando a AVP estava a distribui-lo em diversos polos universitários em Portugal. O folheto utiliza celebridades vegetarianos, estórias com animais, problemas de bem-estar na pecuária, aquacultura e pesca, aspetos ambientais e observações nutricionais para argumentar em prol de uma alimentação vegetariana. Claro que a informação apresentada é escolhida em função do objetivo da campanha, mas os factos apresentados são corretos, e não há um exagero na escolha de imagens para ilustrar práticas desagradáveis na produção de animais.

É preciso falar e alertar, mesmo que muitos já saibam e concordem que o atual consumo de carne no mundo industrializado e o crescimento do consumo nas economias emergentes é insustentável. Mas entre consumir menos carne e tornar-se vegetariano há um passo enorme, e um passo que se calhar nem sequer é necessário.

Eis a minha única reserva sobre esta campanha. Poucos portugueses estarão dispostos a excluir completamente carne da sua alimentação, mas muitos poderão vir a reduzir o seu consumo. Infelizmente, a campanha parece muito mais dirigido para o (muito mais pequeno) primeiro do que para o segundo grupo.