O uso de animais na investigação é controverso. Segundo
alguns filósofos, nunca
ou
quase nunca é eticamente justificado
realizar experimentação animal para o benefício de outros. Do outro lado defende-se o valor
científico de experiências com animais.
Além do (frequentemente aceso) debate,
existe uma posição de compromisso, em que a nossa legislação se baseia. Podemos
ver isto claramente nos recitais (o texto que precede os parágrafos num texto legal da União Europeia e que explica o fundamento das
normas estabelecidas) da Diretiva
2010/63/UE que regula investigação com animais na Europa:
“Embora seja desejável substituir a utilização de animais vivos em procedimentos por outros métodos que não impliquem a sua utilização, o recurso a animais vivos continua a ser necessário para proteger a saúde humana e animal, assim como o ambiente.” (recital 10)“os animais deverão ser sempre tratados como criaturas sencientes e a sua utilização em procedimentos deverá ser limitada a domínios que, em ultima análise, tragam benefícios para a saúde humana ou animal, ou para o ambiente” (recital 12)“A escolha dos métodos e das espécies a utilizar tem impacto directo tanto no número de animais utilizados como no seu bem-estar. Por conseguinte, a escolha dos métodos deverá assegurar a selecção do método susceptível de proporcionar resultados mais satisfatórios e provocar o mínimo de dor, sofrimento e angustia.” (recital 13)
Ou seja, investigação com animais é legalmente (e portanto
segundo a visão em que a legislação se baseia, também eticamente) aceitável quando não existir
outro método, quando o sofrimento animal é minimizado e quando produz benefícios
para a saúde ou ambiente. E – o que na Diretiva tem que ser lido nas entrelinhas
– quando o beneficio ultrapassa o custo.
E é com referência ao último aspeto que académicos
e ONGs
têm argumentado que investigação sobre obesidade não justifica o uso de
animais. Nas palavras do Marc Bekoff:
Num primeiro olhar, parece coerente. Baniu-se (na Europa) o uso de animais para testar cosméticos e há uma visão quase
unânime que os animais não devem pagar pela a vaidade humana. Mas aguentará um
argumento semelhante contra estudos de obesidade uma análise mais aprofundada?
A
resposta é "Não", como argumentamos num
artigo recentemente publicado na revista Journal of Medical Ethics.
Neste artigo analisamos os dois principais argumentos contra o uso de animais na investigação em obesidade: o
argumento da responsabilidade pessoal
e o argumento da distração.
Central no argumento
de responsabilidade pessoal é a afirmação que as pessoas são responsáveis
pela sua obesidade. Comida a mais e exercício a menos resultam em peso a mais,
e os problemas de saúde relacionados poderiam ser resolvidos ou prevenidos com
uma mudança de hábitos. Isto parece ser um facto, mas implica isto que o estilo
de vida de uma pessoa é a sua responsabilidade moral? No que diz respeito a hábitos
alimentares, estes são em grande medida adquiridos na infância,
não se tratando assim de algo que escolhemos conscientemente, como quando escolhemos
investir o nosso dinheiro num videojogo ou numa mensalidade no ginásio. E tão
pouco como podemos escolher os nossos pais, podemos escolher os hábitos com que
somos criados. Isto não implica que não possamos alterar os nossos hábitos (quanto a
pais, creio que continua impossível...), mas implica que é muito mais difícil e
que o sucesso não é garantido – como muita gente confirma repetidamente. Mas, para além disto, os hábitos alimentares na infância não afetam só os hábitos alimentares do adulto, havendo evidência clara de que se traduzem em alterações biológicas. Por exemplo, a amamentação parece reduzir o risco de obesidade em crianças.
O argumento de distração toma como ponto de partida a
observação que hábitos pouco saudáveis, e sobretudo os associados com
obesidade, podem ser prevenidos. Assim sendo, argumenta que se a ênfase deve ser dada às medidas de prevenção. Novamente, é um facto que hábitos pouco saudáveis podem ser alterados e que isto reduz os problemas de saúde que deles derivam.
Mas não é óbvio que isto seja um argumento contra a investigação com animais na
área. A conclusão de que é errado investir em investigação com animais sobre
obesidade necessita que duas condições sejam cumpridas:
a) investigação com o objetivo de desenvolver terapias para
obesidade (e outras doenças relacionadas com estilo de vida) retira atenção e
recursos das medidas de prevenção
b) todos os problemas com obesidade podem ser resolvidos através
de estratégias de prevenção
Não existe evidência que sugere que a primeira condição
seja verdade. Na área de investigação sobre obesidade, o nº de artigos científicos
sobre estratégias de prevenção e controlo aumentou quase 10 vezes num período
de 12 anos (1995/98-2007/10), e este tipo de investigação tem crescido mais do
que qualquer outro tipo na área.
É também altamente questionável que seja possível resolver o problema de obesidade apenas através de prevenção. Esta poderá ser uma ferramenta eficiente para controlar fatores que tenham a ver com a conduta individual. E com mais pais
com hábitos saudáveis, menos crianças serão criadas com hábitos pouco saudáveis.
Mas mesmo se esta abordagem viesse a ter sucesso completo (o que em si é muito
pouco provável), antes de os seus efeitos terem penetrado toda a população, muita
gente virá desenvolver problemas de saúde relacionados com obesidade.
Face ao que é sabido da patobiologia e epidemiologia de obesidade humana, não se pode argumentar que experimentação animal seja menos aceitável para estudos desta doença do que para outras doenças humanas. Claro que isto não implica carta-branca para
cada experiência animal com objetivo de estudar obesidade. Há ainda espaço
amplo para uma discussão critica sobre que aspectos desta doença que são
adequados a estudar em animais.
Concordo com as vossas conclusões. Mas de que forma é que a questão da obesidade é diferente de outras patologias "aditivas" como as drogas, o tabaco ou o álcool? É lícito usar os mesmos argumentos para legitimar investigação nestas áreas?
ResponderEliminarPrimeiro, isto depende do que se entende como legitimar. Assumindo que estamos a falar do que é legitimado na sociedade, ou seja a investigação que é aceite pelas comissões de ética e que é legal, então sim, em geral, investigação que aborda questões de dependência bem como consequências patológicas do consumo é considerado um motivo legítimo para o uso de animais.
ResponderEliminarIsto em termos gerais. Considerando que cada projeto deve ser sujeito a uma avaliação de custo-benefício, é possível dizer que um determinado projeto não pode ser justificado por não apresentar um balanço custo-benefício suficentemente convincente. (Que isto acontece muito poucas vezes é outra discussão).
Se consideramos que obesidade pode derivar de fatores na infÂncia (ou até prenatais) completamente incontrolaveis para o individuo, enquano o começo de consumo de tabaco normalmente é uma decisão tomado por pessoas quase adultas, até poder-se-ia eventualmente argumentar que investigação em obesidade é mais legítima!
Antes de mais, parabéns pela publicação do artigo. Ainda não o li, mas pegando apenas no conteúdo deste post, tenho várias objeções a fazer.
ResponderEliminarComeçando pela questão da responsabilidade pessoal, não concordo que, pelo facto de serem maioritariamente adquiridos na infância, os hábitos alimentares não serem responsabilidade moral da pessoa. Há uma série de contra-argumentos que me vêm à cabeça. Uma pessoa nascida e criada num ambiente de delinquência tem grandes probabilidades de vir a ser ele mesmo um delinquente. Os comportamentos e valores a que foi exposto durante a infância e adolescência refletem-se nos seus próprios valores e comportamentos. No entanto, esta pessoa não é inimputável perante a lei caso cometa um crime. Desde que esteja na plena posse das suas faculdades mentais, a pessoa é responsabilizada pelas suas acções, e considera-se que estas foram escolhas conscientes da pessoa, mesmo que tenha sido massivamente exposta às mesmas na infância e adolescência. E se não considerarem a prática de crimes como um hábito equiparável aos hábitos alimentares, dou outro exemplo: praguejar (vulgo dizer palavrões). Sem dúvida que é um hábito adquirido na infância e adolescência, e no entanto não achamos censurável praguejar em certos ambientes; pouca gente aceitaria a desculpa de que é um hábito de infância.
Também não concordo com a afirmação de que os hábitos alimentares não sejam uma escolha consciente. Sendo a alimentação um comportamento deveras complexo, que envolve a compra de alimentos e a elaboração de refeições, não me parece plausível que se possa escolher, preparar e ingerir alimentos de forma subconsciente. Uma vez que toda a gente tem hábitos alimentares, obesos ou não, acho que posso recorrer à minha própria experiência do que é a alimentação para afirmar que aquilo que escolhemos comer é uma decisão consciente. A não ser que estejamos totalmente isolados do resto da sociedade, somos expostos a todo o tipo de informação sobre a alimentação, desde anúncios a campanhas de prevenção de obesidade, que garantem que tomamos consciência das nossas escolhas e as tentam mudar. Aliás, se os hábitos alimentares não fossem algo que escolhêssemos conscientemente, para quê fazer publicidade sobre alimentos ou campanhas que visam alterar a nossa alimentação?
Voltando à minha experiência pessoal, confesso que tenho péssimos hábitos de sono (a hora a que estou a escrever isto atesta isso mesmo). Sei por experiência própria e pela opinião de especialistas que os hábitos de sono são difíceis de mudar. Mas não deixo de ser moralmente responsabilizado se chegar atrasado a um compromisso por ter ficado a dormir depois de me deitar tarde. Ninguém vai aceitar essa desculpa. E eu percebo isso. No fim de contas, sou eu que decido a que horas me vou deitar. Da mesma forma, penso que, no fim de contas, são as pessoas que escolhem aquilo que comem ou se fazem ou não exercício (à excepção das crianças e alguns adolescentes).
Uma vez que o texto já vai longo, vou deixar a resposta à segunda parte para o próximo comentário.
Passando à resposta dos autores ao argumento da distração, discordo das condições que enumeram para tornar errada a investigação com animais sobre obesidade. Por um lado, acho que se deveria acrescentar os critérios referidos mais acima que especificam quando é que a investigação com animais é legal e eticamente aceitável: não existência de outro método, minimização do sofrimento animal e produção de benefícios para a saúde. Há estudos sobre obesidade que permitem compreender melhor certos mecanismos bioquímicos ou fisiológicos de acumulação de gordura, por exemplo, mas sem benefício direto para a saúde de pessoas obesas. Por outro lado, acho a condição (b) demasiado radical. Se não se fizessem estudos sobre obesidade com animais, não nos restariam apenas estratégias de prevenção ou estudos sobre prevenção. Os estudos com humanos permitem estudar muito mais do que a prevenção, incluindo terapias. É importante lembrarmo-nos que as terapias para a obesidade não têm que (nem devem, na minha opinião) passar pelo desenvolvimento de novos fármacos. Os efeitos da alteração do estilo de vida no tratamento da obesidade podem e devem ser estudados primariamente em humanos. Outros aspectos que podem ser estudados sem recurso a animais incluem a epidemiologia, co-morbilidade, causas, alguma fisiopatologia, ferramentas de diagnóstico, determinantes e impactos sociais e económicos, entre outros.
ResponderEliminarQuanto à condição (a), penso que o aumento da investigação e publicação sobre estratégias de prevenção e controlo está longe de ser suficiente para desmentir o efeito distrativo da investigação com animais. Acho que a avaliação deste efeito tem de passar pela análise das opiniões, crenças e comportamentos relativos à obesidade. O enorme número de produtos destinados à perda de peso, alguns deles certamente desenvolvidos com recurso a (ou com base em resultados de) experiências com animais, e a utilização em massa destes produtos desligados de alterações adequadas na dieta e da prática de exercício físico ilustra bem o que quero dizer. Quase todas as semanas leio artigos na imprensa sobre descobertas recentes relacionadas com a obesidade/perda de peso, muitas vezes apresentadas de forma descontextualizada, criando a ilusão no leitor de que passando a comer determinado fruto, por exemplo, vai perder peso. Já perdi a conta ao número de vezes que ouvi familiares ou amigos dizer que “alimento x não engorda” ou “o chá de y faz emagrecer”. É certo que nem todas estas crenças e lugares-comuns têm base em resultados de experiências com animais, mas a indústria farmacêutica e da perda de peso aproveita-se desta mentalidade para vender os seus produtos (Depuralina, Alli, BioSlim, etc). Há pessoas que vão ainda mais longe e compram produtos que exigem receita médica pela Internet, por exemplo, produtos estes que foram garantidamente testados em animais. Por estes motivos, tenho poucas dúvidas que a investigação com animais retira atenção e recursos não só de medidas de prevenção, como também de estudos com humanos e do desenvolvimento de terapias que não envolvam estudos com animais.
Abro contudo uma excepção relativamente ao estudo da obesidade devida a distúrbios metabólicos ou endócrinos ou outras doenças não relacionadas com o estilo de vida. Penso que, nestes casos, há lugar à investigação com animais no estudo das causas e no desenvolvimento de novas terapias, sempre com as ressalvas de não haver métodos alternativos, minimização do sofrimento animal e benefícios superiores aos custos (se bem que o sofrimento animal não deveria ser encarado como um mero "custo", mas como um malefício).
Obrigada pelo input, que vou partilhar com os co-autores do artigo. Logo que poder respondo.
EliminarAntes de mais, recomendo que leia o artigo, onde os argumentos sejam desenvolvidos de uma maneira mais extensa que o meu post nao da justiça. Se nao tiver acesso pode pedir uma cópia do primeiro autor Thomas Boker Lund no endereço tblu (arroba) ifro.ku.dk
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