Acompanhe-nos no Facebook

quinta-feira, 21 de maio de 2015

O "caso" da queda do gato hipotético

[Actualização: foi hoje também notícia no Público]

Foi postado recentemente no blog Aventar um post  do professor de história do ensino secundário João José Cardoso  intitulado "Quando os animais escrevem manuais", e no qual o autor manifesta a sua repulsa por um exercício de um livro de Físico-Química do 9º ano (Zoom, Areal Editores), sendo o cerne do problema o lançamento de um gato de uma altura de 5 metros.


No mesmo post, destila fel pelos presumíveis autores do exercício, os quais refere pelo nome, lamentando a impossibilidade de os poder largar de uma janela abaixo, acto que o autor presume que fosse causar danos substanciais (ao piso, claro está) pela densidade do "calhau rolado" que presume possuírem (confesso não conhecer a expressão, só os propriamente ditos). No chorrilho  de comentários ao post incendiário, alguns do próprio autor, sobe-se a fasquia: os autores são agora bestas, dever-se-ia atirá-los e medir a profundidade do buraco no chão. 

O exercício polémico
Segundo o autor, apela-se neste exercício ao incumprimento de uma lei. Não vejo como, confesso, já que sendo claramente ilegal atirar um animal de uma janela, não vejo que o exercício faça qualquer apelo nesse sentido. Carecerá este livro de um disclaimer à laia de "nenhum animal foi magoado na escrita deste manual"? Ou "não tentem isto em casa"? Porventura considerará o autor mais benigno incitar à violência contra autores de manuais escolares, pessoas que existem, de facto, com direitos (inclusive ao bom nome) que alguém que presumo de esquerda deveria ter na mais alta consideração?

É assustador como um simples exercício num manual (ainda que um tanto ou quanto infeliz) de imediato faça com que estes professores, e colegas do autor do post, passem a "bestas". Já vi este exercício de alterização por estigmatização 'do outro', e das consequências que pode ter, como é o caso dos ataques (na forma tentada, concreta e até virtual) a investigadores que usam animais nas suas experiências. Se estas pessoas forem apresentadas como sub-humanos, haverá quem não veja problema em tratá-los da mesma forma. 

E, ainda que de mau-gosto, será tão desumano o exercício em questão? É de notar que:

  1. Há um problema clássico da Física relacionado com o modo dos gatos caírem "de pé" 
  2. A imagem ilustra o righting reflex, mostrando que o animal cai com as quatro patas no chão. 
  3. Uma queda desta altura em princípio não teria consequências de maior para o animal (mas por favor não tentem isto em casa, OK?) **
  4. É um gato hipotético. Get over it. 

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

*[Mas não é o caso do exercício apresentado, que é somente um problema de queda de graves] 
Há uma aparente contradição do princípio da conservação do momento angular, pois o gato começa com momento angular zero, mas roda 180º, quando o momento angular deveria continuar a ser zero durante a queda. Isto explica-se pelo facto de um gato não ser um sólido inerte e ter ossos e músculos cuja acção conjunta permite exercer a necessária torção. O popular podcast "Smarter Everyday" exemplifica esta experiência neste vídeo

** Mais intrigante ainda é o facto de ser mais seguro para um gato cair de alturas superiores a sete andares. Presume-se que o seu rácio peso/área de superfície em queda (ao estenderem o corpo como "pára-quedas") lhes permita uma velocidade terminal não fatal, como ocorre com os esquilos-voadores. Isto, associado à combinação de  flexibilidade, força e leveza das suas patas (que permite dissipar muita da a energia do impacto), leva a que possam cair de dezenas de andares de altura, ainda que frequentemente com mazelas a merecerem atenção de um veterinário. 

7 comentários:

  1. O exercício em questão não apela ao incumprimento da lei da mesma maneira que Schrödinger nunca apelou ao envenenamento de gatos, ou um exercício que envolva colisões de automóveis não incentiva os alunos a baterem com os seus carros. Já está demonstrado, por exemplo, que jogar jogos mais violentos não promove necessariamente comportamentos violentos. Então afirmar que enunciados de exercícios de física conduzem à criminalidade é mais que um exagero, é uma mentira infundada e irresponsável, é um total desconhecimento das verdadeiras origens da criminalidade e que não assenta bem a alguém que é professor do secundário.

    Como escrevi no dito blog:
    “Alegações extraordinárias carecem de provas extraordinárias” (C. Sagan). E neste capítulo [o post] falha em todas as frentes. Onde está a evidência que a existência deste exercício levou a um aumento do lançamento de gatos em altura? Ou da vontade de o fazer? Onde está a violação da lei patente neste exercício ou na sua resolução por qualquer aluno?"

    Os autores são aliás neutros porque não fazem juízos de valor, isto é, não dizem se está certo ou errado. O único pecado do exercício é de ser de mau gosto, mas isso não é ilegal, que eu saiba.

    Eu sei o que é ter que inventar exercícios inovadores, que não se repitam, que sejam diferentes do que é reproduzido em "n" manuais. Detestava exercícios de física com "tijolos", quando muitas situações da vida real podiam ser retratadas. Foi o que estes professores tentaram: fazer algo minimamente diferente. Resultado? Dezenas de energúmenos a exigir a sua erradicação do ensino. Sim, leram bem, isto aconteceu.

    Lembro-me perfeitamente quando o Prof. José Cravino, professor universitário de Física na UTAD e pedagogo, nos introduziu ao conceito de "momento linear" perguntando-nos se preferiríamos levar com um balázio de uma "Magnum" ou ser atropelados por um camião "TIR". Evidentemente, a resposta residia na velocidade do camião, já que q=mv, e ainda que a massa da bala fosse pequeniníssima, a velocidade com que era disparada era sempre a mesma, ao passo que o camião poderia deslocar-se a 2 km/h, ou menos.

    Estaria o professor Cravino a incitar ao assassinato? Ou ao atropelamento?
    Não, o que fez foi ensinar-nos um conceito que, quinze anos depois, ainda compreendo.

    Incitar ao ódio pelos autores, como é feito no blog Aventar, raia o ilegal. Falamos de humanos reais, aos quais é desejado que fossem atirados da janela abaixo. E tamanha falta de humanismo é uma característica que tenho vindo a constatar da parte de alguns defensores dos animais. Por acaso não serão estes professores também animais? Não merecerão, no mínimo, a mesma consideração dada ao gato hipotético?

    Irresponsavelmente (ou deliberadamente, dependendo do nível de inteligência), o responsável por este post no Aventar colocou os autores do manual numa posição vulnerável a assédio nas redes sociais ou nos seus locais de trabalho.
    Revelou os seus nomes, insultou-os e alterizou-os, desumanizando-os e apelidando-os de bestas. São professores, educadores, pais, pessoas reais, com responsabilidades e vulneráveis a ataques de pais, alunos, direcções escolares e, graças a isto, também de qualquer "justiceiro". Não são gatos hipotéticos numa folha de papel.

    ResponderEliminar
  2. Ocorre-me uma expressão sueca. "caçar mosquitos com canhões", que acho que se aplica a ambos os lados.

    ResponderEliminar
  3. Isto dito, é de reconhecer que a editora reagiu de forma correta e decidiu retirar este exercício, que é profundamente infeliz e indica que os autores não pensaram bem, do livro.

    Não é notícia que os campos de comentários da comunicação social rapidamente se enche de comentários fora de qualquer razão, quando uma notícia é minimamente convidativo a isso. Não havia razão para incendiar o debate desta forma. Mau gosto maior do que a inclusão do exercício no livro, mas não razão para minimizar o primeiro erro.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Por acaso acho que a melhor medida seria reformular o exercício, mantendo o gato e retirando o acto deliberado de alguém o atirar, que é de facto o cerne e a parte mais infeliz da questão.

      Face à escolha de defender os seus autores (e dar-lhes o direito a decidir se alteravam ou retiravam o exercício) ou agir demagogicamente, a editora optou pela segunda opção: a censura. Mas esta é uma decisão que cabia aos autores, num estado democrático, pois errar (e poder corrigir o erro) também é um direito.

      Lá será este exercício de queda de graves substituído por um outro com pesos, caixas ou bolas, em tudo idêntico às centenas de outros exercícios espalhados por aí, e como os restantes igualmente aborrecido.

      Eliminar
  4. O meu principal problema com este "caso" é que, de facto, reflecte muito do discurso e acções por parte de (alguns) defensores dos animais. Uma total falta de compaixão e empatia pelo seu semelhante que, quer queiram quer não, é o "Homo sapiens".

    Em suma, não percebo como para algumas pessoas o estender do seu circulo de consideração moral para englobar os animais implique criar um vazio ao centro, tipo "donut". Estas são as pessoas que ouvimos dizer que "gostam mais de animais do que pessoas" que, em muitas situações, mais que bizarro, é perigoso.

    ResponderEliminar
  5. Eu, no essencial, estou de acordo com o Nuno. Se eu fosse o autor do exercício, reformularia o caso para: "Ao caҫar insectos, o gato Bigodes caiu da varanda de sua casa, situada a 5 metros do solo". Mas nao o removeria, pois não vejo nenhum argumento que ponha em causa a validade do exercício. Aliás, em termos científicos, o exercício é fascinante. Bem contextualizado (como fez o Nuno), é o tipo de exercício que pode atrair jovens para o pensamento científico.

    Ao contrário do chorrilho de impropérios com que a análise do Nuno foi recebida no blog Aventar, a mim parece-me de todo pertinente alertar para o facto de que um exercício hipoteticamente violento seja recebido por tanta violência real, e logo por aqueles que se apregoam como defensores de direitos.

    «Something is rotten in the state of Denmark.»

    N

    ResponderEliminar
  6. E para comprovar o fascínio que um caso como este pode despertar em alguém, partilho um episódio pessoal. Da minha experiéncia clínica, o record de altura que recebi foi uma gata, europeu comum, que caiu de um 13º andar para um chão de cimento. Fracturou as duas tíbias, um perónio, a sínfise mandibular, assim como a bacia em múltiplos sítios. Era uma gata jovem, por sinal de um amigo meu, e acompanhei-a durante anos até morrer, embora não me recorde do seu nome. A gata foi estabilizada e após três dias de observaҫão a hematúria e pneumotórax moderados, foi operada a um dos membros (tíbia e perónio). A semana seguinte foi operada ao outro membro. No recobro, e quando pensavamos como iriamos lidar a bacia, a gata comeҫou a fazer apoio nos membros. De facto, os ossos da bacia tinham consolidado com o repouso da jaula e não foi necessário operá-la.

    O mecanismo de queda dos gatos é realmente assombroso. A ideia é cair em U invertido, com os membros (e cabeҫa) estendidos. Os primeiros membros a tocar o solo são os posteriores onde quase sempre há algum tipo de fractura. A onda de choque estende-se até ao momento em que os anteriores tocam o solo para proteger o tórax. Este mecanismo faz com que, por inércia, a cabeҫa seja projectada para o solo, resultando em frequentes fracturas no palato, dentes e mandíbula. A dissipaҫão da energia por todo o corpo do animal permite que, na maioria dos casos, as lesões não sejam fatais (se tratadas, claro está).

    ResponderEliminar

Obrigado pela sua participação no animalogos! O seu comentário é bem-vindo, em especial se fornecer argumentos catalisadores da discussão.

Embora não façamos moderação dos comentários, reservamo-nos no direito de rejeitar aqueles de conteúdo ofensivo.

Usamos um filtro automático de spam que muito ocasionalmente apanha mensagens indevidamente; pedimos desculpa se isto acontecer com o seu comentário.