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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Uso de animais de companhia no ensino - Parte 2

Vou continuar a analisar o enquadramento legal do uso de animais vadios no ensino da Medicina Veterinária (ver Parte 1). Algumas vozes têm vindo a público denunciar a ilegalidade dessa utilização mas é-me difícil encontrar algum ilícto penal a menos que os animais sejam sujeitos a "dor e sofrimento consideráveis" como no caso das intervenções repetidas.

A jurista Alexandra Moreira diz estarem a ser cometidas "pelos menos duas ilegalidades. Os animais não podem ser utilizados para fins didácticos nem cedidos pelos canis a outros que não sejam particulares ou associações zoófilas". Na verdade, a primeira afirmação não é verdadeira porque - como vimos anteriormente - a lei prevê excepções aos fins didácticos e o uso de animais no contexto clínico veterinário não está abrangido pela protecção a animais utilizados para fins experimentais. Quanto à segunda, a legislação é ambígua. Se por um lado o DL 315/2003 diz que "os animais não reclamados... podem ser alienados pelas câmaras municipais... por cedência gratuita quer a particulares quer a instituições zoófilas devidamente legalizadas..." (Art 19º, ponto 4.), por outro o DL 314/2003 afirma que "nos casos de não reclamação de posse, as câmaras municipais devem anunciar... a existência destes animais com vista à sua cedência, quer a particulares, quer a entidades públicas ou privadas que demonstrem possuir os meios necessários à sua detenção..." (Art.9º, ponto 4.). À luz deste último decreto, e cumprindo todos os demais quesitos, um Hospital Veterinário Universitário parece enquadrar-se dentro do imperativo legal.

Mas aqui surge a questão de os animais serem cedidos ao Hospital Veterinário, não para serem adoptados mas, em última instância, para serem eutanasiados. Maria do Ceú Sampaio, presidente da Liga Portuguesa dos Direitos dos Animais, afirma que “as câmaras municipais não podem transferir responsabilidades, como a da eutanásia, para as instituições de ensino. A lei é clara e não o permite." De facto, o DL 315/2003 declara ser competência das "câmaras municipais a recolha, captura e abate compulsivo de animais de companhia" (Art.19º, ponto 1) mas torna-se muito complicado alegar transferência de responsabilidades se o Veterinário Municipal alegar estar a ceder os animais a uma instituição pública com condições para os receber. O destino posterior dado aos animais passa a ser responsabilidade dessa instituição e não do veterinário municipal, que ainda assim tem o dever de monitorizar as condições de detenção dos animais por si cedidos. Considero que a questão fundamental reside em determinar quem autoriza a eutanásia: se o veterinário municipal se o Hospital Veterinário.

E então retornamos ao ponto inicial: pese embora a aparente ausência de ilícito penal, haverá indícios da existência de ilícito moral? Retomaremos a este assunto oportunamente. (continua)

3 comentários:

  1. Começo por cumprimentar os autores deste blogue pelo cuidado e rigor com que abordam as questões da ética animal e, no caso em apreço, a complexidade da situação ocorrida no curso de Veterinária da Universidade de Évora.
    Não sou especialista desta área e por isso avanço este contributo com a humildade de quem elabora um exercício de opinião, ou seja, um ponto de vista externo à vossa metodologia mais académica e científica.

    Ocorre-me assim questionar o âmbito do que está definido pelo referido Art.º 19.º, ponto 4. Quando a lei estabelece a possibilidade de cedência gratuita de animais não reclamados a particulares ou instituições zoófilas “que provem possuir condições adequadas para o alojamento e maneio dos animais, nos termos do presente diploma”, em que termos e com que objectivos se define esse mesmo “maneio”?
    Temos de presumir que tal exercício não pode violar os Princípios básicos para o bem-estar dos animais, presentes no Art.º 7.º do mesmo diploma. Em particular quanto aos pontos 3 e 4.

    A questão legal e as suas implicações de natureza ética colocam-se assim no facto da utilização destes animais para fins didácticos poder estar a violar esses mesmos princípios. Ou seja, não sendo esses actos destinados ao interesse da saúde dos próprios animais, poderemos denominá-los como actos de medicina veterinária? Como actos legítimos de serem praticados num Hospital Veterinário?

    Tratam-se de procedimentos de natureza médica e cirúrgica, realizados – segundo a justificação de responsáveis da Universidade – para o interesse da aprendizagem de alunos. Mas deles decorrem, sem margem para dúvida, lesões e a morte do animal. E assim temos de questionar se tais práticas, que no meu entendimento e pelas razões atrás expostas não são actos de medicina, constituem “experiência científica de comprovada necessidade”.

    Um exercício de ensino praticado em animais vivos constitui uma experiência científica? Ou entendemos como tal um conjunto de práticas que se enquadram no âmbito de investigação científica, neste caso com a legitimidade de um interesse de força maior que possa estar em causa? No segundo caso, tratam-se efectivamente de cobaias, e colocar-se-à assim a questão da “comprovada necessidade” de tal procedimento ao abrigo da lei. Mas no primeiro caso, esta norma será aplicável?

    Deixo ainda um outro alerta quanto ao perigo da vossa análise, necessariamente racional no sentido académico do termo, poder diluir a implicação ética dos factos em presença. Na primeira parte deste artigo (post abaixo) questiona-se o alcance da definição de “dor ou sofrimentos consideráveis”. A morte, mesmo sob anestesia profunda, é uma forma de sofrimento? Deixo a pergunta no plano ético. E compreendo a complexidade jurídica da questão. Mas sublinho igualmente este alerta, no sentido em que a análise racional não nos faça esquecer que a morte, mesmo a eutanásia sem consciência do animal, não é um acto inócuo, como a frieza da análise racional possa fazer prevalecer.

    São estas as questões que deixo, respeitosamente, à vossa consideração.

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  2. Caro Daniel:

    Um BLOG não se faz só com o que dizem os seus autores mas também com a qualidade dos comentários dos seus leitores e o seu é um bom exemplo disso. As questões que deixa são pertinentes e não merecem ficar sem resposta. Faço aqui uma, não menos humilde, tentativa.

    Em relação à questão do maneio, o legislador não o define. O que a lei entende como "alojamento e maneio adequados" está expresso no Capítulo III e, no caso em apreço, no artigo 27º. Um Hospital Escolar - que, aliás, obedece a legislação própria (DL 184/2009) - também obedece a estes requisitos.
    É ainda possível usar animais vadios e eutanasiá-los a seguir sem violar o Artigo 7º do DL315/2003. Porque a justificação em infligir a morte a um animal está na necessidade de treinar veterinários capazes de evitar "dor e sofrimentos consideráveis" em animais futuros. A justificação não passa portanto por se tratar de uma potencial “experiência científica de comprovada necessidade”. Como já expliquei anteriormente, os procedimentos de natureza médica e cirúrgica não podem ser lidos à luz da legislação de protecção de animais para fins experimentais e portanto, neste contexto, um exercício de ensino praticado em animais vivos não constitui uma experiência científica.
    Em relação à dimensão ética do acto de matar um animal trata-se de uma questão demasiado vasta para responder aqui. Espero fazê-lo noutra oportunidade.

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  3. Subscrevo a resposta do Manuel Sant’Ana acima: os comentários que fazem o debate avançar são essencias para um blogue como este. O debate sobre o uso de animais no ensino tem feito disparar os comentários externos, e os autores agradecem. Esperamos que se encontrou aqui algo interessante, que volte e continue a contribuir!

    A questão da morte é de facto infinitamente complexa, mas acho que se pode fazer umas reflexes mais resumidas relevantes no context.

    PRIMEIRO, reconheço que na discussão profissional de bem-estar animal há uma tendência a considerer a discussão da vida e morte como pertencendo a outra esfera. Um professional da area veterinária / bem-estar animal preocupa-se essencialmente com o bem-estar do animal enquanto vivo, e no que diz respeito à morte, em assegurar que esta ocorre rapidamente e sem dor ou stress. Isto deve-se quase de certeza do facto que a maior parte dos animais com que se lida profissionalmente são criados para ser mortos. Ou põe-se em causa toda a ideia de comer carne e usar outros produtos animais ou faz pouco sentido discutir o facto de tirar a vida de um animai em si. Eis o que fica na nossa esfera professional enquanto tecnicos (e não filosofos) é de promover uma boa vida e uma morte indolor.

    Mas reconheço que corremos o risco de levar ista racionalização demasiado longe. Há situações em que deviamos parar um pouco mais. Em geral, porque não é obvio que como sociedade temos que consumir animais inquestionavelmente da maneira que fazemos, e como profissionais temos alguma responsabilide em não apenas pactuar com o sistema mas po-lo em causa de uma maneira saudável e constructiva. No específico, para muitos isto acontece mesmo com os animais de companhia. Destes temos outra visão, queremos uma vida longa e boa, que só deve acabar quando deixar de haver qualidade de vida, ou seja na altura em que imaginamos que o próprio animal deixa de ter interesse em continuação da vida. Se adoptamos esta perspectiva, a maior parte dos animais num canil terão um interesse em não ser mortos mas continuar a viver. Aquelas que por razões de doença de tratamento dificíl ou impossível não terão, devem se o canil funciona, ter sido eutanasiados quanto antes, e não fazem parte desta discussão.

    Assim sendo, SEGUNDO, a continuação da vida é um real alternativa para estes animais, se não forem usados no ensino veterinarío? Uma outra maneira de colocar esta questão é de perguntar quem ou o que é que fere estes animais? Quem ou que os condena a morte? É o hospital veterinário que os usa no ensino? É o canil municipal que os capta e não consegue canalizar à adopção? É o legislador que obriga o responsável do canil municipal a agir assim? É o dono anterior que por falta de responsabilidade, recursos, coragem ou bom senso achou que abandonar um cão é um mal menor do que as outras alternativas?

    Nisto, acho que o debate imediato acertou mal no alvo. Ou melhor, escolheu o alvo mais próximo, sem reflectir se era o correcto.

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