Acabamos de chegar de um workshop sobre ética animal nos Açores, onde dois de nós tivemos a oportunidade de debater uma série de assuntos relacionados com os animais na nossa sociedade contemporânea. Em total, mais do que 70 pessoas participaram nos dois 'shows' (um na Terceira e outro em São Miguel) e o evento foi realmente um grande sucesso, com muitos debates entusiastas e inteligentes. Como é sempre o caso num bom encontro de filosofia e de ciência, há discussões que não terminam, perguntas que continuam a pedir respostas, e algumas destas esperamos trazer para o animalogos.
Os quatro tipos de interações humano-animal discutidos no workshop trazem discussões bastante diferentes. Nos dois temas abordados por nós - produção intensiva e experimentação animal - há uma tensão evidente entre interesses humanos e animais. Isto também se aplica ao terceiro caso - gestão da caça e da vida selvagem – embora aqui se trate de curtos encontros mais do que de uma duradoura convivência. (Esperamos voltar mais tarde a este tema, no workshop abordado pelo Nathan Kowalsky da Universidade de Alberta, Canadá).
O caso de animais de companhia difere dos outros três de várias maneiras. Primeiro, o contacto entre humanos e animais é muito mais próximo e duradouro. Falamos de indivíduos que vivem sob o mesmo tecto, às vezes até dormem na mesma cama. Segundo, se há uma tensão entre os interesses, é muito menos óbvio em que consiste. Afinal de contas, seria de esperar 1) que as pessoas mantenham animais porque tem amor por eles, e 2), uma vez que os amam querem o melhor para eles. Então, qual é realmente o problema, se houver um?
Inspirados nos problemas levantados por um dos outros oradores no workshop, Professora Maria do Céu Patrão Neves, da Universidade dos Açores, elaboramos a seguinte lista de situações de potenciais controvérsias com seres humanos e animais de companhia.
Convidamos os leitores a pensar sobre cada uma delas. Existe um problema? Se afirmativo, em que consiste e para quem é um problema?
- um gato que se chama José e uma gata que se chama Maria
- um cão que dorme na cama do dono
- um cão que está sempre no quintal sem nunca interagir com os donos que apenas o mantêm (e do qual têm medo)
- um periquito que está numa gaiola na cozinha
- um casal em processo de divórcio que pede para eutanasiar o gato que tinham oferecido, entre si, como prenda de casamento
- cães que devido à preferência para determinadas características estéticas de alguma raças sofrem de graves problemas de saúde
- um casal que depois de um divórcio partilha a guarda da cadela que compraram quando casaram
- um cão que veste um gabardina quando passeia num dia de chuva
- um cão que apenas sai do apartamento no domingo e só se estiver bom tempo
- um cão vegan
- um husky siberiano num apartamento de 70 m2
- uma decoradora de interiores que usa corante de cabeleireiro para que o caniche fique a combinar com o sofá
Apesar do que foi dito na aula, não concordo na totalidade com a escolha do ponto 5 como o mais irremissível. Concordo claro, que é errado querer desafazer-se do seu animal de estimação apenas porque se vão divorciar, um animal faz parte da familia e tal como nunca se iriam desfazer de um filho tambem não acho correcto fazer o mesmo a um animal.
ResponderEliminarNo entanto, discordo quando disseram que eutanasiar o gato era um acto condenável, se não vejamos. Seria melhor o gato ser abandonado a sua propria sorte ou deixado num canil? Se pensarmos no seu bem-estar penso que não, pois a probabilidade de ser acolhido ou retirado do canil por alguma associação seria bastante baixa. Tanto num local como noutro iria viver em situações deploraveis, e na minha opiniao ao eutanasia-lo iriamos poupar-lhe bastante sofrimento. E estamos a falar de um animal saudavel, mas e se fosse o caso de um animal com uma doença cronica que tivesse de ser monitorizado algumas vezes por dia? Não seria melhor a eutanasia? Pois ele nunca teria a atençao e cuidados necessarios e as probabilidades de ser adopatdo seriam ainda menores, sendo que se estivesse na rua provavelmente iria acabar por morrer.
Por isso sim, penso que em alguns casos eutanasiar um animal é a melhor das hipoteses, não querendo isto dizer que o dono não se preocupe com ele ou que seja má pessoa, pelo contrário, pode apenas estar a poupar-lhe sofrimento.
Caro anónimo:
ResponderEliminarO exercício de priorizar situações, como este que fizemos na aula, é sempre ingrato na medida em que nos obriga a justificar actuações gerais que não têm em conta os casos particulares. E os casos que aponta são bem um exemplo de situações particulares que nos obrigariam a rever os valores que estão por detrás de cada afirmação. Da mesma forma, podiamos repetir o exercício com a afirmação 1., que foi uma das que que provocaram menor controvérsia: imagine que eu não gosto do meu vizinho que se chama José e fui dar o nome de José ao meu gato com o intúito propositado de o provocar ("Ó Zé, és mesmo um animal!"). Já não parece tão inofensivo, pois não?
A complexidade e controvérsia existentes na interação humano-animal de companhia/estimação sempre me intrigaram. Se me perguntarem se existe algum problema nas situações potencialmente controversas listadas neste post, dificilmente consigo encontrar uma resposta pragmática e sobre a qual não tenha qualquer dúvida.
ResponderEliminarA situação 4 desperta-me especial atenção: “um periquito que está numa gaiola na cozinha”. Os meus pais sempre tiveram os seus periquitos e caturras em respetivas gaiolas, apesar de tal questão me provocar uma certa agonia e ser um assunto gerador de polémica na nossa casa. Neste tipo de situações, sempre tive a tendência de dar primazia ao pilar da “natureza” dos animais para avaliar o seu bem-estar. No entanto, apesar de inicialmente apresentar uma postura inflexível relativamente a este assunto, a ponderação de diversos argumentos fizeram-me questionar a minha própria posição.
Um dos argumentos dos meus pais consistia no facto de as aves terem uma aparência extremamente saudável, as gaiolas eram suficientemente grandes para fazerem pequenos voos, reproduziam-se frequentemente e eram extremamente bem alimentados e cuidados. Sugeriam ainda que na natureza jamais teriam tanta comida ao seu dispor, e que teriam que enfrentar diversos predadores. Apesar da validade dos argumentos, continuo a não conseguir considerar eticamente aceitável restringir um pássaro a uma gaiola, nem considerar que este animal esteja numa situação de bem-estar, apenas porque apresenta um bom funcionamento orgânico.
Este assunto tem suscitado a apresentação de diversos testemunhos a favor e contra a restrição da liberdade das “aves de estimação”. Um blog (www.nacaodospassaros.com/t5076-asas-para-voar) chega a fazer um estranho paralelismo entre o ser humano, que apesar de ter pernas capazes de correr na natureza, prefere o conforto seu pequeno apartamento, e as aves, que apesar de terem asas para voar, talvez possam também preferir o conforto de uma casa onde elas possam ser alimentadas e cuidadas. Por outro lado, existem aqueles (www.avianwelfare.org/issues/articles/truenature.htm) que salientam a natureza selvagem das aves, e a importância de respeitá-la (Engebretson, Animal Welfare 2006, 15: 263-276). Todavia ainda me questiono: qual será a perceção das aves? Quererão elas a liberdade? Será que elas prefeririam o conforto de uma gaiola recheada de ração e de todos aos artifícios colocados para enriquecimento ambiental, ou poderem voar sem quaisquer restrições? Uma coisa é certa, sempre que os meus pais tiveram um momento de distração, e por algum motivo alguma gaiola ficasse entreaberta, a reação das aves era sempre a mesma: voar, voar para bem longe dali!
Dando-me ao prazer de responder a Analuce Gouveia, devo começar por assentir sobre o aspecto das relações humano-animal de companhia/estimação não serem simples, e raramente livres de controvérsia, pelo que uma resposta pragmática com total ausência de dúvidas seja, de facto, difícil de atingir.
EliminarO periquito (australiano, Melopsittacus undulatus, presumo) está na gaiola, e tem asas, é certo. Algumas questões se desenham logo: ele saberia usá-las se o soltássemos então na sua selva australiana? Conhece ele a Austrália? Teria saudades? Provavelmente este periquito já nasceu em cativeiro, habituado a um ambiente humano, ou humanizado. Não conhece a Austrália e provavelmente não saberia usar as suas asas. E se se tratasse de um cão num pátio? Poderia dar umas corridas no exterior… mas também o periquito. Existem cada vez mais iniciativas, pessoais ou institucionais, que promovem o voo livre de psitacídeos de estimação. Eu próprio tive já periquitos que passavam grande parte do tempo fora da gaiola, e mesmo no ambiente exterior, onde voavam e voltavam a mim, porque gostavam da companhia.
As asas são boas para voar, mas há uma conotação tremendamente poética nas asas de uma ave. Elas representam a liberdade, não só da ave mas num sentido mais alargado de liberdade, com letra maiúscula. A imagem de uma ave numa gaiola remete-nos muito mais para uma interpretação simbólica, subjectiva e inconsciente, do que para um estudo objectivo sobre o animal encontrar-se em condições de experimentar uma existência de bem-estar. Quanto a mim, esta inclinação, que quase todos teremos, não é errada, não querendo negligenciar o forte poder sugestivo que a imagem transporta, mas não chega para avaliarmos o bem-estar cabalmente.
A felicidade da ave pode passar por ser solto e passar horas no ombro de uma criança, vocalizar e cantar em resposta ao palrar do avô da criança, ser levado a voar todas as manhãs a um parque da cidade, receber festas e pedaços de fruta da dona preferida. A maior parte dos animais de estimação selvagens/exóticos não vivem boas condições de bem-estar, é um facto. Mas muitos há que sim. Dependerá sobretudo de uma larga compreensão sobre as suas necessidades básicas, desde o alojamento, o maneio geral, a dieta, a possibilidade de expressão dos seus comportamentos naturais específicos.
Grande parte dos cães, gatos e seres humanos vivem também em condições de sofrimento, em maior ou menor escala, presos numa varanda, numa sala, ou num escritório das 9 às 5, 5 ou 6 dias por semana e, assim como nas aves, esse sofrimento não pode ser desvalorizado, e deve ser ultrapassado. Mas se todos tivéssemos asas, esse sofrimento pareceria a todos muito mais insuportável. Enquanto médico veterinário de animais exóticos, tenho clientes que trazem os seus psitacídeos como autênticos amigos, desenvolvendo com eles relações muito mais saudáveis e ricas, na hora de produzir bem-estar, do que muitas das que vemos entre um homem e um cão, ou entre muitos homens entre si, reciprocamente.
Por último, aquando do tal momento de distração dos pais, a ave não me parece ter tomado finalmente a decisão há muito planeada de uma evasão. Provavelmente, confusa com a situação, e porque nunca antes tinha sido solta, de uma forma gradual, viu-se a voar desgovernada em direcção a nenhum lado, não se conseguindo lembrar em que direcção ficava a Austrália que nunca conheceu.
Obrigado Analuce pelo comentário.
ResponderEliminarDe facto, a comparação entre a natureza e civilização e a preferência do ser humano pelo conforto é bastante comum na argumentação sobre o que é bom para um animal. A versão provavelmente mais absurda dela que alguma vez tenho ouvido foi um velho professor meu que disse que sendo que as galinhas tinham que por um ovo por dia o melhor que podiamos fazer para elas era de mante-las em gaiolas onde não precisavam de se movimentar e dar-lhe comida de fácil acesso.
Como Analuce vai ver mais adiante no curso de formação que está a fazer, estudos de preferência é um dos metodos usados na investigação em bem-estar animal. Mas o tipo de informação que podemos tirar usando este metodo tem que ser bastante mais simples do que a complexa escolha entre uma vida com tudo menos liberdade, e uma vida em que só a liberdade é garantida.
No entanto, para muitos dos animais que são habitualmente mantidos em gaiolas, há alternativas além da gaiola convencional. Gaiolas maiores ou pequenos aviários permite aos passaros voar. Coelhos e pequenos roedores podem andar livremente no chão sob vigilancia por periodos de tempo, e quem possui um jardim pode construir um 'parque' para o coelho ou porquinho-de-India poder pastar fora durante o dia.
Mesmo preferindo o conforto do apartamento, o ser humano tende a preferir não ser aprisionado nele!
Ao procurar um link sobre como organizar um espaço ao ar livre para um coelho de estimação, voltei a encontrar o argument novamente:
EliminarAqui afirma-se com convicção que "todos os coelhos domesticos devem ser mantidos dentro da casa, todo o ano"
http://www.qrabbit.com/rabbits-outdoors.html, se não reduz-se a esperança de vida de 12 para 3 anos.
No entanto, como sempre trata-se de como mante-los. Os problemas levantados pelo autor é a exposição a temperaturas altas ou baixas e o risco de predação - problemas que evidentemente podem ser evitados mantendo o animal dentro da casa durante os periodos em que estas ameaças são reais.
http://www.rabbit.org/journal/1/rabbit-run.html