Há um aparente paradoxo entre a opinião predominante entre cientistas portugueses (e a qual partilho) de que teorias como o criacionismo ou o ‘intelligent design’ não se apresentam como problemáticas em Portugal, e os dados apresentados por Jerry Coine que mostram que cerca de 25% dos portugueses consideram a teoria da evolução falsa. Não resisti a debruçar-me sobre esse paradoxo, e fui assim conferir o artigo original citado por Coyne (e do qual ele obteve o gráfico). O artigo original não é acessível através do website da revista (mas poderão facilmente encontrá-lo através de uma pesquisa no Google).
Este artigo fora publicado em 2006 na Science, por Jon D. Miller, Eugenie C. Scott e Shinji Okamoto, respectivamente dois investigadores dos Estados Unidos e um do Japão. Como acontece frequentemente em artigos publicados nestas revistas de elevado factor de impacto e que são extremamente condensados, para aferir como o estudo foi de facto conduzido o que precisamos de ler é o material de suporte disponível online.
A partir daqui, procurei identificar o que de facto foi perguntado neste estudo e cujas respostas servem de base a este gráfico.
Estes dados referentes à Europa provêm do estudo 63.1 do Eurobarómetro. Este foi conduzido usando um questionário extenso, sendo que Miller et al não fornecem nenhuma informação acerca de que parte dos dados foi usada na sua comparação com os provenientes dos Estados Unidos e o Japão, mas as únicas perguntas que dizem respeito à evolução encontram-se na questão Q10. Segue uma lista de afirmações apresentadas aos respondentes para testar os seus conhecimentos em áreas da Ciência e Tecnologia (nota: a tradução aqui apresentada e a nossa do inglês e difere ligeiramente da versão portuguesa do inquerito original).
Este artigo fora publicado em 2006 na Science, por Jon D. Miller, Eugenie C. Scott e Shinji Okamoto, respectivamente dois investigadores dos Estados Unidos e um do Japão. Como acontece frequentemente em artigos publicados nestas revistas de elevado factor de impacto e que são extremamente condensados, para aferir como o estudo foi de facto conduzido o que precisamos de ler é o material de suporte disponível online.
A partir daqui, procurei identificar o que de facto foi perguntado neste estudo e cujas respostas servem de base a este gráfico.
Estes dados referentes à Europa provêm do estudo 63.1 do Eurobarómetro. Este foi conduzido usando um questionário extenso, sendo que Miller et al não fornecem nenhuma informação acerca de que parte dos dados foi usada na sua comparação com os provenientes dos Estados Unidos e o Japão, mas as únicas perguntas que dizem respeito à evolução encontram-se na questão Q10. Segue uma lista de afirmações apresentadas aos respondentes para testar os seus conhecimentos em áreas da Ciência e Tecnologia (nota: a tradução aqui apresentada e a nossa do inglês e difere ligeiramente da versão portuguesa do inquerito original).
- O centro da Terra é muito quente
- O Sol orbita em torno da Terra
- O Oxigénio que respiramos provém das plantas
- O leite radioactivo torna-se seguro após fervido
- Os electrões são mais pequenos que os átomos
- Os continentes em que vivemos têm-se movido durante milhões de anos e continuar-se-ão a mover no futuro
- São os genes da mãe que determinam se o bebé será um rapaz ou uma rapariga
- Os primeiros seres humanos viveram no mesmo período que os dinossauros
- Os antibióticos tanto matam bactérias como vírus
- Os lasers funcionam pela focalização de ondas sonoras
- Toda a radioactividade é produzida pelos seres humanos
- Os seres humanos, tal como os conhecemos, desenvolveram-se a partir de outras espécies mais antigas
- A Terra demora um mês a dar uma volta em torno do Sol.
Destaquei as duas frases acima que nos dão alguma informação relativamente à evolução. Estas foram também incluídas num estado sobre o nível de aceitação dos paradigmas científicos nos Estados Unidos mas – e isto é de particular importância para entender o que os dados de Miller nos dizem sobre Portugal – no estudo americano estes surgem juntamente com um terceiro, mais forte:
“Os seres humanos foram criados por Deus como pessoas completas e não evoluíram de formas de vida mais antigas”
Vamos assim olhar para estas três informações e reflectir acerca do que as diferentes respostas nos podem dizer sobre o que os respondentes sabem e acreditam
Vamos assim olhar para estas três informações e reflectir acerca do que as diferentes respostas nos podem dizer sobre o que os respondentes sabem e acreditam
- A afirmação “Os primeiros seres humanos viveram no mesmo período que os dinossauros” é falsa. Mas para responder corretamente não chega ter conhecimento que o processo de evolução tem lugar, é ainda necessário conhecer a história natural da Terra o suficiente para saber que a espécie humana apenas surgiu depois da extinção dos dinossauros.
- A afirmação “Os seres humanos, tal como os conhecemos, desenvolveram-se a partir de outras espécies mais antigas” é verdadeira. As razões mais prováveis para afirmar ser falsa serão acreditar que os humanos são especiais e assim não relacionados com outras espécies (ideologia) ou não ter a mínima ideia de como as espécies evoluíram (ignorância).
Mas a única afirmação que permite distinguir ideologia de ignorância é “Os seres humanos foram criados por Deus como pessoas completas e não evoluíram de formas de vida mais antigas”, mas aos respondentes portugueses não foi pedido que comentassem esta afirmação.
No estudo europeu estas frases foram usadas para medir o nível de conhecimentos em ciência e tecnologia - não para medir aceitação da teoria da evolução. E Portugal surgiu como um dos países com menor nível de conhecimento científico, como este mapa do Relatório do Eurobarómetro evidencia (a cor cinzenta representa a categoria mais baixa, 0-20% de respondentes com conhecimento científico muito bom).
E assim, onde levará tudo isto? Vou argumentar que com base neste conjunto de dados é de facto impossível separar ideologia de ignorância na explicação para a relativamente reduzida crença na teoria da evolução em Portugal. Mais, diria que há de facto alguma indicação de que é ignorância e não ideologia que explica porque Portugal fica numa posição tão baixa na escala de aceitação da teoria da evolução.
Baseio este argumento numa abordagem diferente dos mesmos dados. Num artigo de Cosima Rughini de 2011 encontrei o pormenor importante que me faltava no artigo de Miller. Com base nas respostas perante a afirmação Os seres humanos, tal como os conhecemos, desenvolveram-se a partir de outras espécies mais antigas, foi feito o ranking de 33 países em termos de aceitação da evolução. Se este ranking for feito com base na percentagem de respostas corretas (que a afirmação é verdadeira), Portugal ocupa um modesto 18º lugar entre 33. Mas, se o ranking for feito com base na percentagem de respostas incorretas (que a afirmação é falsa), Portugal sobe até um confortável 10º lugar, com uma percentagem menor de respostas erradas do que Alemanha, Países Baixos e Suiça. Isto é porque os portugueses respondem "Não sei" proporcionalmente com mais frequência.
E será que isto importa? Provavelmente, sim. A razão pela qual Jerry Coyne escreveu este livro foi que achou que se as pessoas ficavam a conhecer a evidência convincente da teoria da evolução passarão a ser convencidas da sua veracidade. Como disse na sua palestra na Serralves, ele acabou por perceber que isto não é suficiente, pelo menos nos Estados Unidos de onde é oriundo: as pessoas também precisam de ser menos religiosas.
Mas se em Portugal o principal problema é o conhecimento e entendimento muito limitado da ciência (e não sendo a Igreja no geral avessa à ciência ou a explicações científicas), então será mais importante disseminar o conhecimento do que será combater a religião.
Contudo, pessoas como os autores deste blog não parecem ser as mais adequadas para este trabalho, pelo menos a acreditar no Eurobarómetro…
Obrigado, Anna. A tua sagacidade em tirar a limpo uma informação que não parecia bater certo e a forma como o fizeste são um belo exemplo do espírito científico (mesmo que o público português não o reconheça...)
ResponderEliminarConcordo contigo. O que é preciso é mais e melhor ensino de ciência. A meu ver, religião e a ciência são formas distintas - mas ainda assim complementares - de olhar o mundo.
Apenas por vir a propósito, algo a não perder
ResponderEliminarConferência CNECV | FLAD Bioética e Religiões
A propósito deste tema, e perdoem-me a provocação, mas não resisto a partilhar a analogia do gato preto:
ResponderEliminarFILOSOFIA é estar num quarto escuro à procura de um gato preto.
METAFÍSICA é estar num quarto escuro à procura de um gato preto, que não está lá.
RELIGIÃO é estar num quarto escuro à procura de um gato preto, que não está lá, e gritar "ESTÁ AQUI"!!!
CIÊNCIA é estar num quarto escuro, à procura de um gato preto, munido de uma lanterna".
E de facto é por incompreensão da validade e utilidade desta "lanterna" - que representa o método e os valores científicos - que o público não aceita nem valoriza o conhecimento adquirido através da abordagem científica. E o maior problema reside aí.
Acho que me posso orgulhar de cada aluno meu ter terminado o ano com a plena convicção que o paradigma evolucionista é, de longe, o mais sólido e satisfatório para a explicação de todos os fenómenos biológicos, incluindo os comportamentais e sociais. Mesmo aqueles a quem ensinei outras disciplinas que não a Biologia. Do mesmo modo que a teoria da Tectónica de Placas revolucionou a Geologia e a Relatividade a Física, a evolução apresenta-nos um conjunto de princípios à luz dos quais todo o conhecimento científico sobre a vida (mas não só) pode ser analisado e interpretado objectivamente e no qual todo o novo conhecimento pode ser encaixado sem entrar em contradição com o previamente estabelecido, o que por sua vez confere cada vez maior solidez, consistência e fidedignidade ao evolucionismo. Não conheço o livro do Coyne, mas recomendo a qualquer pessoa que queira perceber a verdade dos factos relativamente à evolução a ler "O Espectáculo da Vida – A Prova da Evolução" ("The Greatest Show on Earth: The Evidence for Evolution"). Neste livro, e ao contrário do que seria de esperar, Dawkins faz um esforço para não enfatizar a sua perspectiva ateísta (ou melhor dizendo, anti-teísta) para falar apenas da prova científica, de modo a contrariar a crescente onda dos "Young Earth Creationists". Aliás, ele apresenta a carta que escreveu juntamente com outros cientistas (incluindo o Patrick Bateson) e altas individualidades da Igreja exigindo a Tony Blair o melhoramento do ensino da Ciência nas Escolas.
Gostei do post, só não resisto fazer um comentário, algo fora do contexto.
ResponderEliminarNo final há uma frase:
"...e não sendo a Igreja no geral avessa à ciência ou a explicações científicas..."
Não vejo nessa frase o mínimo de verdade. Se utilizarmos "igreja" como sinónimo da maior igreja do Ocidente (a Igreja Católica) a frase não é correta.
Isto porque ao longo da história vê-se, um observador honesto, que a Igreja mais colaborou que reprimiu o desenvolvimento da Ciência.
O Igreja Católica construiu a primeira academia de ciências (a Pontifícia Academia de Ciências), construiu universidades e escolas em diferentes países durante sua maior influência terrena numa altura onde não existia ensino gratuito e a ciência era um luxo já que era mais comum faltar pão a mesa que a disponibilidade de um livro.
A história da Igreja está repleta de leigos e ordenados que, com apoio da mesma, ajudaram o desenvolvimento da Ciência que culminou no que hoje temos. Não foi casual que nomes como Mendel, Copérnico, Ockham, Bacon, Bolzano entre outros tantos nomes surgiram no seio do próprio sacerdócio católico.
Se avançarmos para as outras denominações cristãs, judaicas ou mesmo muçulmanas também encontraremos exemplos de apoio ao desenvolvimento da Ciência.
Uma mentira repetida a exaustão torna-se verdade absoluta.
Torna-se demasiado simplista culpar a falha crónica na educação e no ensino a todos os níveis com uma suposta opressão da "igreja" seja ela qual for. Nenhum religioso é um mentecapto anticiência, cada um sabe dar a qual o que é direito. E se há religiosos extremos que repudiam o avanço científico (sim, sabemos que há) há também cientistas (e "defensores" da ciência) que desconhecem a própria história de como esta surgiu, preferindo uma visão enviesada da mesma imaginando uma luta inexistente entre o "bem" (ciência) e o "mau" (religião).
Não me estendo mais.
Fernando Almeida
Obrigada pelo comentário.
EliminarAcho que não estamos em desacordo aqui. A igreja a que refiro é a Católica, já que falo sobre Portugal.
Concordo consigo que a Igreja tem tido um papel em proporcionar infra-estrutura para ciência e para a educação. E pelo menos em tempos mais recentes tem conseguido separar o que é domínio da Igreja do que é domínio da ciência em termos de pensamento. O que faz com que estamos numa situação bastante diferente e bem menos preocupante do que nos Estados Unidos em que não faltam igrejas que acham a Bíblia é autoridade no que diz respeito a explicar mecanismos de geologia e biologia.
Isto dizendo respeito a Igreja Católica e os nossos tempos (ignorando actos do passado como a discussão do heliocentrismo). Não sei que influencia terão os movimentos pentecostianos oriundos do Brasil que se espalham em Portugal agora.