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sábado, 25 de dezembro de 2010

Tomten deseja a todos os animais um Bom Natal!

Na minha terra natal, a tradição manda que nesta noite se deixa um prato de risgrynsgröt (uma espécie de arroz doce) na escadaria ou no estábulo,  É para Tomten, o guardião da quinta, da propriedade e sobretudo dos animais domésticos. Foi uma parte importante da crença popular até o século 19 e continua central no folclore sobretudo natalício.

Tomten é às vezes retratado como uma criatura de feitio difícil, com tendência para se vingar nos donos da quinta se não for bem tratado. Mas para os animais será sempre o guardião que Astrid Lindgren descreve no The Tomten e The Tomten and the Fox, livros para crianças de todas as idades. Não é por nada que quem os ilustrou foi o artista Harald Wiberg, sobretudo conhecido pelas suas pinturas de animais selvagens na natureza sueca.

A ligação do tomten com o mundo animal parece, de facto, continuar forte ainda nos nossos tempos. Outro livro clássico, sobretudo para quem procura conhecer mais sobre a historia destes seres, é o Gnomes, escrito por Wil Huygen e ilustrado por um outro grande desenhador e pintor de animais, o holandês Rien Poortvliet.

Imagem de http://dorpsspot.blogspot.com/2009/07/rien-poortvlietmuseum-heropend-op.html
E é ainda um tomte que transforma o menino Nils Holgersson num rapaz de tamanho de um duende que depois percorre a Suécia nas costas de um ganso na sua Maravilhosa Viagem em que não só fica a conhecer o país mas também encontra muitos animais, fala com eles e pouco a pouco aprende a respeita-los.


A todos um Bom Natal!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Meninos e galinhas



Numa das suas crónicas na VISÃO, o multi-premiado escritor Gonçalo M. Tavares (autor de obras como Jerusalém), aflorou um tema, no mínimo, arrojado: a evolução das galinhas. Não se compreende muito bem onde o escritor pretende chegar com a sua reflexão (aliás, eu já desisti de procurar significados nestas crónicas para além de serem livres exercícios de escrita) mas não consigo conter o incómodo provocado por aquelas últimas palavras: "Mas as galinhas não, ninguém consegue acreditar que elas aproveitem o mal que lhes fazem para evoluir - elas não são assim tão humanas, são animais que ainda percebem poucas coisas." E aqui deixo a pergunta: estamos na presença de prosa digna de respeito ou de opinião infundada e disparatada?

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A declaração de Basileia - informação, debate e transparência contra a intolerância

 A 29 de Novembro, e em resposta aos actos de violência por parte de grupos extremistas defensores dos direitos dos animais, juntaram-se em Basileia 50 cientistas de topo alemães e suíços para redigir e assinar a Declaração de Basileia, recentemente em destaque na Nature News.

Da esquerda para a direita: Prof. Michael Hengartner, Reitor da Faculdade de Matemáticas e Ciências Naturais da Universidade de Zurich; Prof. Dieter Imboden, president do National Research Council of the Swiss National Science Foundation e Prof. Stefan Treue, Director do German Primate Center, Göttingen
A mesma fundamenta-se na importância que a informação transparente e pormenorizada pode ter no esclarecimento da opinião pública acerca do uso de animais em biomedicina. No seu preâmbulo, faz-se uma pequena resenha dos argumentos que, no seu entender, justificam o uso actual de animais para dar resposta a problemas emergentes da saúde humana e de outros animais.

Os signatários comprometem-se, entre outras coisas, a apenas usar animais quando estritamente justificado, no menor número possível e de acordo com as mais escrupulosas medidas de preservação do bem-estar animal e do ambiente, fazendo ainda esforços na promoção do entendimento da ciência por parte do público e da classe política.


É também devidamente vincado que a educação científica nas escolas, bem a informação dos media e a promoção de um debate informado são da maior importância, que não é possível separar investigação básica da aplicada, que o uso de animais em biomedicina não deva ser travado, que novas leis e regulações sejam promulgadas como resultado de um entendimento objectivo, democrático e factual e que condenem quem a pretexto dos direitos dos animais transgride a lei e promove actos de violência.


Todos os cientistas cujo trabalho se relaciona de alguma maneira com o mundo animal são convidados a subscrever esta declaração (instruções aqui).

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Diferentes culturas, diferentes éticas?

Texto escrito por Bárbara Oliveira, Fátima Sousa, Irina Pereira e Raquel Matos, alunos do curso de Pós-Graduação em Bem-Estar Animal, ISPA

Ao comentarmos esta questão somos levados a pensar que o seu conteúdo está intrinsecamente associado às diferenças culturais dos povos e, como tal, podemos inferir que os valores éticos também podem mudar com as variações culturais. Esta pergunta reveste-se de um conteúdo gigantesco quando pensamos nas várias escolhas alimentares de diferentes civilizações.


Analisemos a situação sobejamente conhecida do uso de cães e gatos na alimentação dos povos asiáticos. Do ponto de vista ocidental, a ideia de comer animais domésticos, como o cão e o gato, com os quais (tradicionalmente) se criaram fortes laços afectivos, origina repulsa e, em muitos casos, indignação, uma vez que não são percepcionados como alimento. Estas espécies, como seres sencientes que são, poderiam ser alvo do mesmo “tratamento” que as espécies pecuárias sem originar grande controvérsia, não fossem as relações emocionais que os entrelaçam com os humanos.


Noutra perspectiva, e colocando de parte qualquer teoria relacional, será muito diferente o consumo de carne canina ou felina do consumo de qualquer outra carne? Até que ponto a moralidade de alguém ou algum povo pode ser posta em causa pelo tipo de carne que consome? Onde se enquadra, por exemplo, o consumo de carne de cavalo nesta escala?

Tal como no Ocidente as pessoas podem ficar chocadas pela maneira como os cães são tratados nas culturas orientais, onde são utilizados como fonte de alimento, levando-nos a pensar que ética e que moralidade terão esses povos, questionamos o que pensarão os habitantes da Índia sobre as civilizações ocidentais, onde os bovinos são tratados sob controlo humano, para depois servirem de alimento, enquanto, que para eles são considerados animais sagrados?

Face a esta reflexão, questionamos – diferentes culturas, diferentes éticas? Não, entendemos que não. A ética, como princípio filosófico, é a mesma. A aplicação prática desta é que difere de cultura para cultura. A moralidade impressa a todos os “actos” com animais é divergente, e isso sim, depende da cultura dos vários povos. Talvez a grande questão se coloque não no tipo de carne consumida, mas as condições em que estes animais são mantidos e abatidos.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Experimentação animal no século XXI: Necessidade ou Capricho? - O debate possível ( PARTE 3)

[Partes 1 e 2, respectivamente, aqui e aqui]

Seguidamente, tem a a palavra Rita Silva, Presidente da Direcção da  Associação Animal. A pessoa afável e calma que se apresenta com um caloroso sorriso contrasta com o teor do resumo que apresenta. No mesmo, um cenário dantesco e horripilante do uso de animais em ciência é pintado com imagens grotescas de cabeças rebentadas por martelos, ossos quebrados, colunas partidas e eléctrodos no cérebro (estes, já agora esclareça-se, não causam dor, uma vez que o cortex não possui terminações nervosas) que se perfilam para ilustrar um título já de si sugestivo: "Violência em nome da Ciência", executada sem anestesia em "pelo menos 65% dos casos", asseguram.

A sua exposição é, contudo, muito menos gráfica e de teor bastante mais moderado. Na mesma, condena o uso de animais sobretudo com base em argumentos éticos, e não tanto científicos, uma abordagem que inteligentemente a salvaguarda de potenciais investidas reactivas duma plateia de futuros ou actuais cientistas, que sabe não serem o seu público. Não deixa, no entanto, de lembrar o que no passado foram [qualquer coisa como] as trágicas consequências humanas do uso de modelos animais. Fala nas alternativas, no caminho da modernidade e do que é o grande interesse económico que faz perpetuar o uso de animais, não obstante o facto do mesmo ser, no seu entender, obsoleto. Condena ainda o uso de animais na investigação em cosméticos e promove a base de dados da "Animal" em alternativas e da sua lista de de produtos "amigos dos animais". Não obstante o meu dever de isenção, temo ter inconscientemente abanado a cabeça em reprovação de muito do que oiço. Muito do que diz é uma reprodução de falácias repetidas ad nauseam em sites "anti-vivissecção" (termo, no meu entender, infeliz) facilmente refutáveis, mas que são tidas como verdadeiras por parte de quem não tem acesso (ou não quer ter) ou capacidade para entender informação cientifica, objectiva e isenta. Não conheço nenhum cientista que use animais por interesse económico, sei que não há qualquer composto em produtos cosméticos que não tenha sido já testado em animais e humanos e que as companhias que alegam não o fazer usam produtos já extensivamente testados há muitos anos atrás.  Conheço todos os casos de alegada falta de validade do uso de animais repetidamente evocados, de modo deturpado ou completamente erróneo.

Confesso-me desiludido. Se, por um lado, os argumentos científicos ou económicos não são devidamente explorados e fundamentados, por outro esperava um aprofundar das questões éticas subjacentes ao uso de animais, dado esse ser o principal argumento. Nem uma coisa nem outra, portanto.

Como cientista, devia-me sentir ultrajado por estas alegações. Engulo, contudo, o orgulho ferido e procuro ver que há alguma razão por detrás destas acusações. Há ainda uso de animais desnecessário e injustificadamente severo. Sinto que, não obstante terem sido os 3Rs propostos há 50 anos, a sua implantação estar ainda na infância, por variadíssimas razões que não cabem aqui. E coloco a pergunta [a propósito da inclusão dos 3Rs na nova directiva europeia]:

- "Como vêem os 3Rs? Progressistas? Nefastos por legitimadores do uso de animais?"

- "Importantíssimos", oiço de um lado, desejando por dentro que todos os cientistas assim pensassem.
- "Só o Replacement nos interessa" - oiço do outro lado. Contudo oiço ainda que, até o mesmo ser completamente atingido, devemos Reduzir e Refinar. Luz ao fundo do túnel! Afinal há diálogo possível.

Apesar de muitas vezes o debate entre cientistas e activistas seja frequentemente difícil, é possível falarmos a mesma linguagem: a da razão, do respeito e do compromisso. Não o chegamos a alcançar verdadeiramente neste debate, mas não havia tempo nem representatividade de ideias suficientes para isso. Mas é algo que devemos alcançar, já que estamos "condenados" a partilhar o mesmo Planeta.

O tempo dedicado às perguntas do público é desperdiçado, na sua maioria. Infelizmente, o conhecimento superficial do tema e o desejo dos alunos de manifestar o seu apoio ou reprovação do que ouviram faz perder a oportunidade de trazer a lume as questões mais prementes. Nas suas respostas, as palestrantes aproveitam para reiterar as suas mensagens: de um lado, a experimentação animal como científica e moralmente justificável e os 3Rs e a lei como garante da elevação ética da conduta dos investigadores; do outro, o uso de animais como totalmente injustificável, pouco válido e promovido por interesses alheios à ciência. Aplausos aqui e ali, para apoiarem uma ou outra postura (sendo a prof. Fátima um pouco mais popular, até porque "joga em casa").

No remate, a Rita Silva aproveita para uma vez mais chamar a plateia a atenção para o sofrimento animal e da urgência em mudar de paradigma. A prof. Fátima tira mais um coelho da cartola: - "quem concorda com o uso de animais para testar produtos como champô para o cabelo?" - e penso para mim, "eu concordo em usar produtos testados, mas não vejo motivo para testar mais produtos". No entanto, antes mesmo de se poderem contar as opiniões, remata da seguinte forma: "eu também não, não há necessidade".  Fico confuso, pois tenho a certeza que está mais mais do que ciente da importância de usar produtos seguros (ainda que não sejam necessário mais produtos de higiene). Oiço aplausos. Percebo a sua intenção: apesar de o fazer de um modo um tanto ou quanto demagógico, quer assegurar à audiência que os animais não são usados para "futilidades". Ficamos bem na fotografia. Mas quem me dera que a mesma retratasse com fidelidade a realidade.

Este é o debate possível. Mas um debate, apesar de tudo. Balanço positivo, portanto.

Experimentação animal no século XXI: Necessidade ou Capricho? - O debate possível ( parte 2)

Antes de proceder a uma análise do próprio, debate, acho pertinente começar por remeter o leitor para os resumos das oradoras neste debate.

Debate
by nunohfranco

Falta no resumo da Prof. Fátima Gartner a alusão que fez ao uso de modelos espontâneos de animais em contexto clínico (que até Rita Silva aprovou), a qual pode ser uma mais-valia em várias áreas de investigação, mas que tem imensas limitações para que possa ser usada de modo generalizado em biomedicina. Uma ressalva que faltou, todavia, o que pode ter dado aos alunos a ideia que esta abordagem pode resolver os problemas éticos do uso de animais.
 
Da leitura dos resumos, denota-se a importância que a Prof. Fátima ao esclarecimento da opinião pública, de mostrar o lado humano dos investigadores, da importância do seu trabalho, da existência de regulação do uso de animais e da preocupação existente da comunidade científica do uso de animais. A sua apresentação cobriu, aliás, tudo isso, com o bónus de ter sido apresentada de um modo apaixonante e muito convincente. Eu, se fosse um dos alunos espectadores, teria ficado mais do que satisfeito com a elevação ética dos cientistas, com os benefícios do seu trabalho e daria graças por ser alguém devidamente esclarecido e não pertencer a esse grupo de"activistas" que, afinal, apenas pretendem atrasar o progresso científico com as suas ideias "radicais".

Como cientista a trabalhar na área da ética e do bem-estar animal, contudo, estou longe de ficar convencido. Começou a Prof. Fátima - depois de ressalvar que a sua visão era fundamentada na sua própria experiência profissional - que era o dever de qualquer cientista responsável garantir o respeito pelos 3Rs. O problema, no entanto, é que nem todos agimos como os tais "cientistas responsáveis", por falta de conhecimento, sensibilidade ou por outros factores alheios ao nosso controlo. É um facto. Nem todos estão suficientemente sensibilizados para o dever ético de reduzir o sofrimento ao mínimo. Muitos outros não sabem como o fazer. Nem todos sabem justificar porque usam um determinado modelo animal, para além do facto de muitos outros o fazerem na mesma área (só a questão cultural do uso de animais dava pano para mangas). Muitos desconhecem a melhor maneira de delinear uma experiência com animais, seja ao nível do desenho experimental estatístico ou não estatístico, e usam animais a mais, ou a menos, e muitas vezes com resultados adulterados por não controlarem devidamente as diferentes variáveis (atenção que isto nada tem que ver com a validade de usar animais como modelos dos seres humanos, a qual faz todo o sentido de um ponto de vista evolutivo, desde que consideremos as devidas distâncias filogenéticas). 

Quanto à legislação, a mesma apenas tem utilidade se houver mecanismos de supervisão do seu cumprimento. E esta supervisão está longe de ser satisfatória, embora a este respeito os institutos de investigação cada vez substituem às entidades governamentais nessa supervisão e aconselhamento sobre o uso de animais, o que é louvável

Mas, resumindo, ainda há muita investigação em animais que é injustificada (por redundante ou desnecessária), infrutífera (por má escolha do modelo ou falhas no desenho experimental) e não respeitadora dos 3Rs. Quero muito acreditar na existência da comunidade científica retratada por Fátima Gartner, mas sei que ainda estamos longe desse paradigma. E a professora também sabe isso. Mas acredito que as coisas mudam para melhor e que há trabalho excelente no desenvolvimento e implantação dos 3Rs. Há muito a fazer na sensibilização e formação dos cientistas, aqueles que, em última instância são os verdadeiros responsáveis pelo bem-estar dos animais. A formação tem um papel importantíssimo. Para o ilustrar, deixo-vos aqui a opinião de cientistas que participaram em cursos de Ciências de Animais de Laboratório (categoria C - FELASA), uma ano depois dos mesmos:

Clique na imagem para a ampliar

Mas há ainda o lado da história da Associação Animal para contar. E que fica para a terceira parte.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Experimentação animal no século XXI: Necessidade ou Capricho? - O debate possível ( parte 1)

Antes de mais, peço desculpa pela extemporaneidade deste post, que diz respeito ao debate que ocorreu na FEUP a 26 de Novembro a propósito das II Jornadas de Bioengenharia e subordinado ao tema em epígrafe.

A convite dos alunos de Bioengenharia, fui moderador deste debate, que contou com as apresentações da Prof. Fátima Gartner (ICBAS/IPATIMUP) e de Rita Silva, Presidente da Direcção da Associação Animal.

A apresentação da prof. Fátima foi, fundamentalmente, uma apologia àquilo que entendeu ser a actual necessidade imperiosa do uso de animais como modelos em investigação básica e aplicada, como garante da eficácia e segurança das terapias e outras intervenções usadas em contexto clínico e veterinário. Uma das questões mais focadas foi a da Responsabilidade - que salientou ser o "quarto R" da experimentação animal - dos investigadores no uso de animais. Assim, frisou ser o dever de qualquer investigador responsável o de apenas usar animais quando absolutamente inevitável, no menor número possível e com a maior atenção para o seu bem-estar. Outro tópico que destacou foi o uso em investigação de modelos espontâneos de doenças em animais de companhia que chegam às clínicas veterinárias.
Da parte de Rita Silva, foi feita essencialmente uma oposição ao uso de animais no plano ético. Assim, independentemente de quaisquer outros factores, o uso de animais não deveria ser sequer equacionado como uma possibilidade, tendo afiançado - ainda que sem especificar - a existência de alternativas ao uso de animais sencientes, aqueles que, efectivamente, deveriam ser protegidos do sofrimento. Ainda que sem desenvolver em concreto a que se referia, foram ainda apontados "os dramas e horrores do passado" atribuíveis à alegada falta de validade do uso de animais como modelos de seres humanos e o facto do uso de animais apenas ser praticado devido à existência de grandes interesses económicos detrás dos mesmos.

Aparte a enorme diferença de posturas, houve também uma grande diferença de estilos. Ao contrário do que estava à espera, a participação mais entusiasta e emocionada partiu da Prof. Fátima, que não se coibiu de lançar desafios à plateia ("quem tomaria uma droga ou vacina não testada? Ou a daria ao seu animal?"), que prontamente aderiu e corroborou em massa o que pretendia demonstrar. Outra diferença a assinalar foi que a Prof. Fátima falou a título individual e com base na sua experiência de décadas como investigadora, enquanto que a Rita foi porta-voz da posição oficial da Animal, não se desviando da mesma.

No geral, o debate correu com elevação e respeito de parte-a-parte, algo que temia poder não acontecer, uma vez que tinha já tido a má experiência do debate no Clube Literário do Porto, que foi absolutamente kafkiana, nomeadamente ao nível das reacções inflamadas do auditório (mas não dos oradores), onde termos como "sadismo", "tortura" e "mentira" foram apontados ao trabalho de cientistas que dedicam os seus esforços à melhoria da saúde e qualidade de vida dos seres humanos.  Tal não foi o caso, contudo.

Ambas as convidadas deram a conhecer a sua diferente visão de um mesmo fenómeno - o uso de animais como modelos em investigação biomédica - cada uma de algum modo influenciada pela subjectividade da sua própria experiência e sensibilidade. Mas isto fica para a segunda parte...

(Continua...)

Experimentação animal pre-eutanásia: Parte 3

Por Joel Ferraz, médico veterinário e Mestre em bioética
Qual é o mal de experimentar num ser-vivo prestes a ser eutanasiado?

Quanto ao bem-estar, em princípio não haverá tanto comprometimento como na hipótese anterior, já que, pelo menos, não haverá sofrimento continuado, como no caso do pós-operatório, ou de experiências repetidas.

O valor da vida não é também ameaçado pelo procedimento em si, pois a eutanásia encontra-se eminente independentemente da experimentação.

Relativamente à dignidade do ser-vivo, continuamos numa zona cinzenta. Provavelmente, neste caso, a dignidade será implicada num grau intermédio, quando comparado com as duas situações anteriores.

E então, onde ficamos?

De uma forma resumida, penso que a experimentação num ser-vivo que está prestes a ser eutanasiado, pode ter menos implicações no bem-estar e na vida, quando comparada com a experimentação num ser-vivo saudável, mesmo que este tenha sido concebido para a experimentação. Por sua vez, a utilização de cadáveres acarreta ainda menos possibilidades de comprometer o ser-vivo, julgando por estes três valores em jogo no nosso tabuleiro.

Para finalizar, gostaria de ressalvar a existência de muitos outros factores e valores que devem ser atendidos e bem pesados, para uma mais útil discussão sobre esta matéria, factores e valores que não são vislumbrados pelo objectivo deste texto. Exemplo disso é o benefício da experimentação, na forma de resultados, para a Ciência, para a humanidade, para o indivíduo, podendo incluir também o ser-vivo utilizado na experiência. Outro exemplo é o impacto social que a instrumentalização poderá ter, no aumento ou diminuição do respeito pela vida. Outro, ainda, é a incapacidade parcial de um cadáver em simular as condições em vida; ou de um animal que vai ser eutanasiado em oferecer certos resultados a longo prazo. Mais, a necessidade de no caso de investigação científica os indivíduos testados apresentarem-se normalizados, não implicando desvios nos resultados, e não ameaçando a segurança e a sanidade da equipa em experimentação.

Para finalizar mesmo, proponho que se questione se a utilização de um animal de rua que vai ser eutanasiado, não poderá ser incluída num dos 3 R´s propostos para melhorar o uso de animais na experimentação científica e, para melhor rigor, em qual deles: Refinement, Replacement ou Reduction.

Experimentação animal pre-eutanásia: Parte 2

Por Joel Ferraz, médico veterinário e Mestre em bioética

(ver Parte 1)

Qual é o mal de experimentar num ser-vivo saudável?

Poderemos afirmar que não existirá sofrimento inerente ao uso para experimentação? Mesmo que o ser-vivo seja criado e mantido para esse fim, em condições unanimemente consideradas apropriadas, pode advir sofrimento da experiência, nomeadamente, e especificando, para experimentar técnicas cirúrgicas, e respeitando os protocolos ideais, vai existir um distúrbio inevitável no bem-estar, pelo menos, pós-operatório (dor, enjoo, confusão mental). Parece-me que o bem-estar será comprometido na experimentação, independentemente de o ser de uma forma significativamente importante, independentemente de ser ou não justificável, pelo acrescento que trará à Ciência.

Relativamente à vida, ela poderá estar mais ou menos ameaçada, dependendo muito do que é experimentado, de que forma, do número de vezes, ou por quem é praticada a experiência.

Quanto à dignidade, continuará a existir pouca clareza, mas parece-me que a implicação da instrumentalização no bem-estar e na protecção da vida, torna esta questão mais inclinada para um dos lados: talvez a dignidade do ser-vivo esteja a ser mais lesada, se a experiência implicar uma ameaça ao seu bem-estar e à sua vida, independentemente de o ser de uma forma significativamente importante, independentemente de ser ou não justificável, pelo acrescento que trará em termos de conhecimentos ganhos. (continua)

Experimentação animal pre-eutanásia: Parte 1

Por Joel Ferraz, médico veterinário e Mestre em bioética

Este post devia se calhar antes ter o cabeçalho Experimentação animal peri-eutanasia (proximo da eutanasia), porque a pergunta que aborda é:

Qual é o mal de experimentar num cadáver?

Em termos de sofrimento, parece claro que não vão existir implicações. Experimentar num cadáver, não vai alterar o seu bem-estar, pois, depois da morte, no corpo deixa de existir a capacidade de sentir prazer ou sofrimento, tanto quanto nos é possível inferir.

Quanto à vida, deixa de haver constrangimento, porque ela já não existe. Já não há risco ou possibilidade de se ameaçar esse valor.

E quanto à dignidade do ser? Aqui as opiniões vão estar sujeitas a muitos outros factores, nomeadamente, do que se entende por dignidade, em que medida ela existe num ser-vivo morto (e, se sim, se é no corpo que ela continua a existir, ou se é noutro sítio diferente), do que se vai experimentar, de que forma e por quem vai ser feita a experiência, entre outros. A dignidade de um ser pode ser posta em causa quando ele está a ser instrumentalizado, independentemente do seu bem-estar e da sua vida? A instrumentalização de um cadáver, para o bem de outros sujeitos, pode ferir a sua dignidade? Aparentemente, esta questão da dignidade trará muitas voltas, menos consentâneas que a questão do sofrimento e da questão da vida. (continua)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Experimentação animal pré-eutanásia

Em 3 mensagens (Parte 1, Parte 2, Parte 3) segue uma reflexão do médico veterinário e mestre em bioética Joel Ferraz sobre o problema ético de experimentação em animais, visto na perspectiva da recente debate sobre o uso no ensino veterinário de animais vindos do canil municipal.

O termo experimentação é algo ambíguo no contexto, e na minha ligeira revisão dos posts optei por manter esta ambiguidade. Pode por um lado tratar-se de uma experiência científica em que se procura saber algo que ninguém sabe. Mas pode também se tratar de um aluno que experimenta técnicas que para ele são novas, embora já são conhecidas e descritas por outros.

Esta observação é relevante porque como temos visto em discussões anteriores, é explicitamente proibido (Directiva 86/609/CEE, transposta pelo Decreto-Lei 129/92, de 6 de Julho 1992) usar cães e gatos vadios na experimentação científica, mas a lei não é clara sobre o seu uso no ensino. No entanto, como já se reflectiu aqui varias vezes, nem todos os actos legais são moralmente indiscutíveis. Mais, um acto pode ser ilegal apesar de ser de muitas perspectivas moralmente correcto.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Alternatives to animal use - part 6

Finally, the Freudian slip. Or maybe the last-speech-before-lunch effect. 

This lecture (all lectures now available here) was given by Gianni Dal Nigro, veterinarian and toxicologist from GlaxoSmithKline. He reported from the EPAA workshop Combining excellence in science and animal welfare, held in October this year, which gave a number of recommendations for the future activity of the EPAA.

Images borrowed from the EPAA website
Typing and listening at the same time, I understood the first of these recommendations (which reads "keeping Replacement as the ultimate goal") as "skipping Replacement as the ultimate goal".  I found this really interesting, definitively daring but rather coherent with Richard Fosse's lecture. So, when  the time for post-lecture questions came, I took the chance to ask more or less the following:

Thank you for a very interesting presentation. I find it interesting that you have decided to skip Replacement as the ultimate goal, and I wanted to ask you if the workshop took this decision because it is not possible to reach replacement in the foreseeable time, or because it is not considered a relevant aim. I will explain why I'm asking the question. As has already been commented on by others, the animal use we are talking about in this conference is only about 10-15% of the total numbers of animals used in experimentation. And if we look at the overall use of animals, it is an even smaller fraction. Interestingly, we never discuss Replacement or even Reduction as regards animal production for human consumption, although the nuimbers are much larger and the amount of suffering is often considerable. Why is it, then, that it's so important to replace the use of animals in testing? Are we really investing the efforts where they are best needed?

The answer was not very clear, which I now fully well understand, as what I asked must have made no sense whatsoever to the speaker, who had said something completely different. But the question remains. Why is it that using animals in research is such a questionable activity that we ought to make every effort to avoid it, when using animals for food production is reasonably accepted? 

One can turn the question around: why don't we discuss the 3Rs for animal production? 




quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Alternative approaches to animal testing - part 5

Or how through a Freudian slip this blogger asked an inconvenient question at the conference. 

Of the talks I was able to follow at the EPAA conference before I had to head for the airport at 15h, there are two I haven’t yet presented. This is of course because they were the two that sparked long chains of thoughts which I had yet to sort out. 

The first was an outstanding – yes, I will be subjective here, I had not heard this speaker before and I was very impressed by the way he delivered a number of subtle but extremely well formulated key messages – talk by Richard Fosse, a veterinarian and laboratory animal scientist who will play a leading role in the EPAA over the next five-year period. Fosse opened by referring to the enormous challenges facing regulatory testing, as industry moves from blockbuster drugs to individualized medicine, and from active substances which are molecules to those which are fragments of proteins and expected to interfere with the action of individual cells. (This means, in more everyday language, drugs which act on increasingly small and specific aspects of the body). The more a drug is designed to act specifically on the body of the patient to be treated, the more difficult it will be to make generalizations from simpler systems or across species. For example, how to test a human-specific antibody fragment to ensure that it is safe for humans? This, argued Fosse, will lead away from the conventional rodent toxicology tests over to the use of humanized mice and primates for studies in which “entire animals are absolutely indispensable”. 

Fosse highlighted that while the EPAA works only on testing, by far most animals – somewhere between 60 and 80% are not used for testing but for research. When exploring new terrain, the challenges as regards the 3Rs and specifically replacement are different – the idea of replacing a process we are still trying to understand is "a semantic trap". Based on the observation that “academia is totally dependent at the moment and for the foreseeable future on access to animals”, Fosse underlined how crucial it is that the near future focus of EPAA will be on the 2Rs, reduction and refinement. 

Another challenge highlighted is how to measure how effective the 3Rs are, in relation to how much research is being done. “The more we use transgenic animals, the more animals we seem to need”, in what is the typical cycle of research: a new model becomes a new resource through which much more can be explored, it leads to more research which gives new knowledge which can then be used to build alternative approaches. 

It seems Fosse was mainly talking about using animals, rather than about alternative approaches, and about research rather than testing. This may seem odd in the context of the conference but I think there is an important meaning and message. 

Replacement is very selling – successful replacement reflects both scientific and moral progress. Replacement is also consensual – a manifesto which can be signed by scientists and animal rights activists alike. 

But it is precisely in the fact that replacement sells so well that there is a risk. The 2Rs initiative is one illustration of this: specific 3Rs funding goes exclusively to replacement, leaving reduction and refinement to fend for themselves. This is related to the even bigger risk that in well-meaning political correctness we actually oversell replacement. Opponents to the use of animals in research capitalize on this. They argue that scientists are reactionary when defending the use of animals in science, that this is old-fashioned and that replacements are available. We’ve seen it very frequently in the recent discussion in Portugal sparked by the Azambuja animal facility plan. If replacement is possible, then why even thinking of reduction and refinement?

The problem is, to the best of our present scientific knowledge, replacement isn’t possible, at least not throughout and at least not now. (This doesn’t mean all animal use in science is important and morally unquestionable. It may be a perfectly valid moral view to say that we have no right to use animals in science (it’s not a view that I share, but it’s a view I respect). But to say that using animals is oldfashioned and irrelevant because there are alternatives is argue on a very questionable fact base.) And this is a message scientists will have to work hard to be able to sell in a trustworthy way. 

There’s another issue in this, which cropped up informally in the discussion. The EPAA  works exclusively on animal testing, and animal testing is probably the particular black sheep in the public view of animal experimentation. It’s probably also the one part of animal experimentation which is most difficult to defend morally, because the long-term benefit of testing new substances is often mainly economical. But it is also a rather small proportion of animal experimentation – some 10-15%. The largest proportion of experimental animals are used in research, where replacement is much more difficult. To only concentrate efforts to replace the use of animals in what is already a minor proportion of overall numbers may be seen as disproportionate. 

Even more so as the number of animals used for experimentation is only a very small fraction of the total number of animals used for human benefit. Which takes me to my Freudian slip.
(to be continued)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Animal welfare in Europe or Alternatives to animal use - part 4

“Animal welfare is a very important European issue. Animals have rights”. These were the words of European Commissioner John Dalli, Health and Consumer Policy, in his opening speech at the EPAA conference. 

It is sometimes refreshing, sometimes frustrating for an academic researcher to hear a non-academic state as a fact what we may spend careers discussing, questioning and redefining. In this particular case, I’m not sure how much more we can get from discussing whether animals are the sort of beings that can have rights. (Although I couldn’t help recalling the discussion developing in Portugal two years ago when lawyer and centre-right *politician Paulo Rangel provocatively declared Animais não têm direitos – Animals don’t have rights).

But I know it’s important that a European Commissioner states that animal welfare is a very important European issue. This means that the issue is on the European agenda and that we can expect more EU activities focusing on animal welfare. This is clearly visible in the EU animal welfare policy, which Dalli highlighted.

*More specifically, Member of the European Parliament for PSD, the party once led by present European Commission president José Manuel Durão Barroso

Alternative approaches to animal testing - part 3

Blogging directly from the meeting room is exciting and inspiring but challenging and – not surprisingly! - not fully compatible with engaging in the discussion. Computer at hand, I could at least write down fragments to use when actually composing the remaining posts on the plane back. Here’s what the second session was about:

Friedlieb Pfannkuch, Roche, gave an international perspective on initiatives to promote and implement the 3Rs in regulatory testing. He showed the long list of which are legally required before a new drug can be launched on the market . A powerful illustration of what a challenge it is to make changes here, because so many changes are needed. Essentially, Pfannkuch was arguing for developing increasingly sophisticated approaches in which one looks at how small doses affect critical processes in animals, and for the systematic improvement of the reliability of safety tests (animal and non-animal tests alike) in accurately predicting what will happen in humans.

David Gallacher, Johnson& Johnson, presented one such initiative: the animal model framework. Through a series of teleconferences and sharing of data, several pharmaceutical companies work together to evaluate how good different tests are at making accurate predictions, and how they can be improved in this sense. The first results of this initiative are expected to be published in the beginning of 2011.

Ngaine Dennison from the UK Home Office presented the results of a 15-year preoccupation with reduction and refinement initiatives within one single test: the mouse bioassay for shellfish toxin. An illustrative example of how one can reason in this situation by combining scientific/technical and practical/economical considerations.  This means asking questions like
  • Can we administer the sample in a way that causes less harm to the animals?
  • Can we reduce the duration of the test? 
  • Can we anaesthetize the animals to reduce suffering?
Joanna Edwards from the not-for-profit organizaton Lhasa limited presented the existing databases and softwares for data sharing in the life sciences. The idea behind this type of initiatives is to bring together existing information about substances into large and sophisticated databases. The more complete and versatile such databases are, the further they can be used to make predictions.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Alternative approaches to animal testing - part 2

Right now, Timo Nevalainen from the University of Eastern Finland is opening the second morning session, on the 2Rs in regulatory testing. The 2Rs is the central theme of this year's conference and stands for Reduction and Refinement - that is the 2Rs which applies when animals are actually used rather than being replaced. This is an important notion and I think there's quite some tension here between a politically correct but not necessarily realistic focus in the official discourse.

Two of this morning's speakers made this tension very evident. Emily McIvor from Humane Society International stressed that the ultimate goal must be replacement and Richard Fosse from EPAA stressed that in the foreseeable future we will continue to need to do research on entire animals. Both of these statements are probably right - but what frustrates many laboratory animal scientists today is that strategic funding initiatives are very biased towards replacement. But only to fund research on replacement is rather much like only funding research into alternative car fuels and ignore efforts to reduce the pollution from existing combustion engines. Moreover, it's probably deceiving the public into believing that replacement of animal research is really around the corner.

The 2Rs initiative which Timo Nevalainen headed a couple of years ago was an attempt to change this. In a document signed by some 50 scientific societies and animal welfare associations, the European Commission was asked to consider funding Reduction and Refinement research in the 7th Framework Program for research. It wasn't successful -still Replacement is the only one of the 3Rs which have dedicated funding from the European Commission.

Alternative approaches to animal testing - part 1

Today I'm blogging live from Brussels, from the annual conference of the European Partnership for Alternative Approaches to Animal Testing. This is a collaboration between the European Commission and industry to promote alternatives. 

Before going on to reporting from the different talks, let me clarify two key issues:

Animal testing is a very specific part of the larger concept of animal use for scientific and other experimental purposes. It means the use of animals to test substances (pharmaceutical drugs, industry chemicals etc) in order to evaluate whether it is safe to use these substances for the purpose they are intended. Research which is intended to develop those substances or understand how they can be used to treat diseases in the case of drugs, or to kill insects in the case of pesticides, is not animal testing.

Alternative approaches is a tricky expression. Alternatives are not only those which replace animals, but also those that reduce the number of animals and those that refine the way animals are used so that suffering is minimized. That is, all the 3Rs as defined by Russell and Burch in 1959 are considered alternatives.

domingo, 28 de novembro de 2010

Uso de animais de companhia no ensino - Parte 3

(Ver Parte 1 e Parte 2)

Pese embora a aparente ausência de ilícito penal, haverá indícios da existência de ilícito moral na utilização (única) de cães vadios para fins didácticos?

A Bastonária da OMV opõe-se à utilização de animais vivos excepto "quando o procedimento [como anestesias, cirurgias e exames] possa ser um bem para o próprio animal" (Jornal Público, 19-11). Recorrendo ao equilíbrio reflexivo, Laurentina Pedroso argumenta ainda que "Tudo deve ser feito com grande rigor e com respeito pelo animal".
Por outro lado, o colega Joel Ferraz, em entrevista ao Canal UP a 18-11, utiliza uma análise custo-benefício para, dentro da tradição utilitarista, legitimar esta opção: “Em termos éticos, e no que diz respeito ao sofrimento e valor da vida animal, não reprovo, quando comparado com o considerado normal, que é criar animais especificamente para fins científicos ou pedagógicos. Pode considerar-se moralmente mais aceitável usar um animal que não tinha utilidade e cujo destino seria a eutanásia, do que um animal saudável criado e destinado à experimentação”.

E aqui reside o ponto fundamental: de que forma a instrumentalização de um cão vadio é moralmente mais condenável do que recorrer a um beagle classificado com a categoria D (cão para investigação científica)? Em nenhum deles o procedimento é utilizado para o bem do próprio. E este raciocínio pode ser alargado para incluir as palpações transrectais em vacas de refugo, venopunções em ovinos, intubações nasogástricas em asininos ou outros animais que não servem outro propósito que não o ensino. E portanto a questão ética basilar não se resume aos animais vadios mas sim à utilização de animais vivos no ensino práctico da medicina veterinária, sem benefício dos próprios. Se, como sociedade, não estamos preparados para recorrer a animais vadios para fins didácticos, pela mesma ordem de razão não devemos aceitar nenhuma das práticas anteriores. (continua)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Uso de animais de companhia no ensino - Parte 2

Vou continuar a analisar o enquadramento legal do uso de animais vadios no ensino da Medicina Veterinária (ver Parte 1). Algumas vozes têm vindo a público denunciar a ilegalidade dessa utilização mas é-me difícil encontrar algum ilícto penal a menos que os animais sejam sujeitos a "dor e sofrimento consideráveis" como no caso das intervenções repetidas.

A jurista Alexandra Moreira diz estarem a ser cometidas "pelos menos duas ilegalidades. Os animais não podem ser utilizados para fins didácticos nem cedidos pelos canis a outros que não sejam particulares ou associações zoófilas". Na verdade, a primeira afirmação não é verdadeira porque - como vimos anteriormente - a lei prevê excepções aos fins didácticos e o uso de animais no contexto clínico veterinário não está abrangido pela protecção a animais utilizados para fins experimentais. Quanto à segunda, a legislação é ambígua. Se por um lado o DL 315/2003 diz que "os animais não reclamados... podem ser alienados pelas câmaras municipais... por cedência gratuita quer a particulares quer a instituições zoófilas devidamente legalizadas..." (Art 19º, ponto 4.), por outro o DL 314/2003 afirma que "nos casos de não reclamação de posse, as câmaras municipais devem anunciar... a existência destes animais com vista à sua cedência, quer a particulares, quer a entidades públicas ou privadas que demonstrem possuir os meios necessários à sua detenção..." (Art.9º, ponto 4.). À luz deste último decreto, e cumprindo todos os demais quesitos, um Hospital Veterinário Universitário parece enquadrar-se dentro do imperativo legal.

Mas aqui surge a questão de os animais serem cedidos ao Hospital Veterinário, não para serem adoptados mas, em última instância, para serem eutanasiados. Maria do Ceú Sampaio, presidente da Liga Portuguesa dos Direitos dos Animais, afirma que “as câmaras municipais não podem transferir responsabilidades, como a da eutanásia, para as instituições de ensino. A lei é clara e não o permite." De facto, o DL 315/2003 declara ser competência das "câmaras municipais a recolha, captura e abate compulsivo de animais de companhia" (Art.19º, ponto 1) mas torna-se muito complicado alegar transferência de responsabilidades se o Veterinário Municipal alegar estar a ceder os animais a uma instituição pública com condições para os receber. O destino posterior dado aos animais passa a ser responsabilidade dessa instituição e não do veterinário municipal, que ainda assim tem o dever de monitorizar as condições de detenção dos animais por si cedidos. Considero que a questão fundamental reside em determinar quem autoriza a eutanásia: se o veterinário municipal se o Hospital Veterinário.

E então retornamos ao ponto inicial: pese embora a aparente ausência de ilícito penal, haverá indícios da existência de ilícito moral? Retomaremos a este assunto oportunamente. (continua)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O caso das galinhas cegas

Texto escrito por Ana Margarida Costa, Diva Oliveira e Sónia Saraiva, alunas no Curso de Pós-Graduação em Bem-Estar Animal, ISPA

O sofrimento põe de forma inequívoca em causa a integridade e dignidade dos seres sencientes. Se podemos diminuir a dor ao custo de outros aspectos da integridade fisica, será um objectivo desejável?

Vemoso caso das galinhas cegas. Aqui, Costa et al. (2001)* dá-nos conta da utilização da técnica do corte de bico para prevenção do canibalismo e picacismo entre galinhas poedeiras em sistemas de produção intensivos, sendo estes comportamentos predominantes entre galinhas com plumagem castanha. Estes problemas têm uma origem multifactorial englobando as condições de criação, de alimentação e de manutenção tornando difícil o seu controlo.

O corte do bico constitui um procedimento doloroso para as galinhas e pode resultar numa privação sensitiva permanente e definitiva. Uma solução alternativa consiste na reprodução selectiva a partir de uma mutação espontânea que origina galinhas cegas que não mostram tendência para nenhum dos comportamentos apontados. Não existe alteração na produção precoce de ovos e apesar de haver uma diminuição de cerca de 25% de consumo de alimento, como são menos activas mantêm os seus níveis de peso. No entanto, como a visão é um dos sentidos mais importantes para as aves, há um risco considerável que as galinhas cegas deixem de ter os comportamentos normais da espécie como o “banho-de-pó” e têm dificuldade em alimentar-se.

Aparentemente, o procedimento de cortar o bico por ser doloroso põe em causa o bem-estar animal, parecendo ignorar qualquer código moral e ético da relação homem/animal. Segundo J. Bentham (1748-1832) quando se preocupa com o bem-estar de alguém não interessa se ele pensa ou raciocina, mas sim se sente ou consegue manifestar de algum modo o seu sofrimento mesmo sem falar. À primeira vista parece evidente existir apenas uma preocupação economicista, uma vez que o canibalismo causa a morte de alguns animais acarretando prejuízo para a exploração. Contudo, pode estar presente também uma preocupação ética animal, na medida em que existe o desejo de minimizar o sofrimento que os animais causam uns aos outros. Este caso suscita assim alguma ambiguidade, levantando algumas questões. O que provocará maior dor, o canibalismo e picacismo, ou o corte do bico? Ou será que um enriquecimento do meio ambiente seria suficiente para evitar os comportamentos agressivos?

A reprodução selectiva de modo a originar galinhas cegas, numa lógica puramente utilitarista constituiria um bem e deveria ser incentivada, ao passo que, do ponto de vista da integridade psicofísica do animal, representaria uma forma de mutilação, impedindo o uso de um dos orgãos para o fim que evoluiu. Além disso, sob o ponto de vista do bem-estar animal existiu uma interferência humana que impede o animal de ter uma vida própria dos da sua espécie. E seguramente, os ancestrais selvagens das galinhas usavam a visão para a generalidade dos seus comportamentos, desde a procura de alimento até à fuga de predadores. Tom Regan lembrou que se “os animais são sujeitos à vida” têm direito à sua própria vida e não àquela que achamos melhor para eles. O maneio de animais de produção e de consumo em explorações intensivas, que P. Singer (1975) descreve como “a granja-fábrica”, justifica-se, se considerarmos que a humanidade necessita de proteínas animais. No entanto, nessas explorações, é essencialmente contemplado o factor custo/benefício a par dos aspectos técnicos, económicos e de rentabilidade da produção, sendo descurados os aspectos étnicos e morais no maneio e utilização dos animais, o que nos leva de imediato a questionar se será ou não lícito e moralmente aceite manipulá-los de acordo apenas com os interesses dos seus proprietários.

A questão ética de adaptar os animais às condições de manutenção através da criação selectiva ou do corte do bico, tem como alternativa adaptar tais condições às necessidades nos animais. Pensamos que a relação homem/animal, do ponto de vista ético seria mais equilibrada se fosse de facto possível melhorar as condições ambientais e sociais. Tal seria possível melhorando e enriquecendo as instalações e os espaços de permanência das galinhas, de modo a que estivessem menos animais em cada espaço e que estes pudessem manifestar comportamentos normais de vida livre. Desta forma, contribuir-se-ia para a diminuição dos níveis de stresse e de ansiedade nestes animais que despoletam comportamentos de agressividade como o canibalismo e o picacismo.

A ética empresarial sobrepôs-se assim à ética animal.


*Costa et al 2001 BIOÉTICA PARA AS CIÊNCIAS NATURAIS, compilação de conferências e casos de estudo do FLAD/NSF International Bioethics Institute, coordenado por Humberto D. Rosa

Violência contra animais - um sinal de alerta?

Texto escrito por Carla Abreu, Filipa Alves, Inês Gaspar e Rute Coelho, alunos do curso de Pós-Graduação em Bem-Estar Animal, ISPA.

O Homem é um ser violento por natureza, ou melhor, a violência faz parte da natureza do Homem. Mas quando se transforma em violência gratuita e arbitrária, podemos dizer que ganha contornos de doença (e sendo assim há quem diga que a humanidade anda, mental e emocionalmente, doente).
Noe Estados Unidos, o fenómeno da violência gratuita sobre animais tem vindo a receber uma atenção crescente por investigadores de ramos tão distintos como polícia, ciência forense, psicologia e etologia (humana e animal). Observam uma correlação entre  casos de violência cruel sobre animais, e casos de violência sobre pessoas, sejam elas outras ou o próprio. Actos de violência sobre animais servem, assim, de sinal de alerta para possíveis situações de violência sobre outros (violações, tráfico de droga, abuso infantil, entre outras) e o facto de se crescer em ambiente violento torna mais provável que se inflijam actos de extrema violência, sobre animais. 
Mas, como relata Charles Siebert num artigo de New York Times em Junho 2010, é possível juntar animais com pessoas com historial violente num projecto com contornos positivos. 
To date, one of the most promising methods for healing those whose empathic pathways have been stunted by things like repeated exposure to animal cruelty is, poetically enough, having such victims work with animals. Kids who tend to be completely unresponsive to human counselors and who generally shun physical and emotional closeness with people often find themselves talking openly to, often crying in front of, a horse — a creature that can often be just as strong-willed and unpredictable as they are and yet in no way judgmental, except, of course, for a natural aversion to loud, aggressive human behaviors. (...) 
For Lockwood, animal-therapy programs draw on the same issues of power and control that can give rise to animal cruelty, but elegantly reverse them to more enlightened ends. “When you get an 80-pound kid controlling a 1,000-pound horse,” he said, “or a kid teaching a dog to obey you and to do tricks, that’s getting a sense of power and control in a positive way. We all have within us the agents of entropy, especially as kids. It’s easier to delight in knocking things down and blowing stuff up. Watch kids in a park and you see them throw rocks at birds to get a whole cloud of them to scatter. But to lure animals in and teach them to take food from your hand or to obey commands, that’s a slower process. Part of the whole enculturation and socialization process is learning that it’s also cool and empowering to build something. To do something constructive."»
O objectivo é de  reverter o processo e fazer a pessoa perceber que pode direccionar essas pulsões violentas e a necessidade de controlo e poder, para fins mais construtivos. É extremamente importante trabalhar nesse sentido, a fim de criar equilíbrio e harmonia entre pessoas e entre pessoas e animais, a fim de sanar a sociedade.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Uso de animais de companhia no ensino - Parte 1


Partindo do caso recente da Universidade de Évora, vou abordar a utilização de animais de companhia (cães, gatos ou outra espécie não pecuária) para realização de procedimentos didácticos na formação de médicos veterinários. Seguindo a sugestão da Anna, vou começar pelo enquadramento legislativo.

Não existe legislação específica para o uso de animais no ensino e por isso é necessário recorrer a outras leis relacionadas e daí tirarmos as nossa conclusões. Estes animais não são considerados "animal de laboratório" e - a menos que eles também sejam utilizados para fins científicos ou experimentais - não se aplica a Directiva 86/609/CEE, transposta pelo Decreto-Lei 129/92, de 6 de Julho. A referida lei é clara neste aspecto ao excluir na definição de Experiência "as práticas não experimentais, agrícolas ou de clínica veterinária". Se uma intervenção veterinária não conta como "experiência", não pode o animal a ela submetido ser considerado "Animal para experiência". Mas o que também significa que a protecção que esta Directiva confere aos animais vadios ("Os animais vadios das espécies domésticas não devem ser utilizados em ensaios") não tem força de lei no contexto clínico de um Hospital Veterinário Universitário.

A legislação que mais perto se lhes aplica é a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia, transposta para a legislação nacional pela Decreto-Lei 276/2001 de 17 Out, alterada pelo Decreto-Lei 315/2003 de 17 Dez. Esta lei diz o seguinte (art. 7º):

"É proibido utilizar animais para fins didácticos e lúdicos, de treino, filmagens, exibições, publicidade ou actividades semelhantes, na medida em que daí resultem para eles dor ou sofrimentos consideráveis, salvo experiência científica de comprovada necessidade e justificada nos termos da lei."

O que depreendemos desta afirmação é que é legítimo utilizar animais de companhia para fins didácticos desde que dentro de certos limites. Como não sabemos o que o legislador quer dizer com "dor e sofrimento consideráveis", temos de ser nós, como sociedade, a encontrar esses limites. Será, portanto, ilegítimo, o uso de animais abandonados para fins didácticos? Como alguém disse num comentário que li, entre centenas: se um animal vadio e destinado a ser abatido, for devidamente anestesiado antes de ser sujeito a uma qualquer intervenção cirúrgica e, no final, eutanasiado sem recuperar a consciência, como argumentar contra esta intervenção? Sobre isto falaremos noutra ocasião. (continua)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Cães vivos usados como cobaias na Universidade de Évora



A notícia publicada na edição de hoje do JN caiu como uma bomba: o Canil Municipal de Évora tem mantido um acordo com a Universidade de Évora de forma a disponibilizar animais abandonados/vadios para as aulas práticas do curso de Medicina Veterinária. Foram antigos alunos (e actuais veterinários) que denunciaram o facto à comunicação social e as ondas de choque já se fazem sentir com a Bastonária da Ordem dos Médicos Veterinários a condenar o sucedido e a convocar uma comissão de trabalho sobre o uso de animais no ensino.

A utilização de animais vivos não é exclusividade dos cursos de medicina veterinária (seria até interessante saber qual a situação noutros cursos) mas em nenhum outro a questão se coloca ao mesmo nível. Para se formar um médico veterinário é necessário ter acesso a animais domésticos - caninos, felídeos, suínos, bovinos, caprinos, ovinos e equinos - saudáveis e doentes (para não falar em coelhos, aves e espécies exóticas). Mas que regras se devem seguir para que esta utilização de animais - a meu ver inquestionável - se faça de uma forma eticamente responsável e socialmente aceitável? Voltaremos a este assunto num próximo post. (continua)

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A clonagem animal em tempos de crise


A Comissão Europeia (EC) anunciou a 19 de Outubro que vai suspender temporariamente a aplicação da clonagem animal para produção de alimentos dentro da UE. A clonagem apresenta-se como um dos temas mais controversos no domínio da bioética animal. E, talvez como em nenhum outro, a aplicação do Princípio da Precaução esteja tão patente como no caso da clonagem. Na verdade, tanto a EC como a norte-americana Food and Drugs Administration consideram não existir quaisquer indícios de que os alimentos clonados coloquem problemas diferentes daqueles colocados pelos alimentos mais tradicionais. Mas isso não impede que este tipo de material biológico seja tratado de forma diferente de outros produtos de origem animal. Porque será?

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Dono ou guardião?

"Some animal advocates don’t like the word ‘pet’. They find it demeaning to the animals we live with. They want us to call our furry, finned and winged friends companion animals and their owners guardians. (…)
I don’t particularly like the word companion animal. Many pets are not true companions. When my friend Joe Bill was a child, his favorite pet was a crawfish that lived in a bowl next to his bed. Pet? Yes. Companion? No?
Substituting the term guardian for pet owner is also problematic. Unlike the guardian of a human child, a pet’s guardian is allowed to give away, sell, or sterilize their ward against its will. They can even have their companion animal euthanized if they tire of it. The terms companion animal and pet guardian are linguistic illusions that enable us to pretend we do not own the animals we live with"

A argumentação é do Hal Herzog, psicólogo norte-americano que teve um papel pioneiro no desenvolvimento da investigação das interacções entre humanos e outros animais, human-animal studies, e a citação do mais recente livro dele Some we love, some we hate, some we eat.

O termo pet não é limitado para os animais que partilham a nossa vida e tem um uso mais geral para descrever algo que é tratado com especial carinho. É também um verbo: to pet somebody quer dizer dar festinhas a alguém (não deve ter sido isso que Joe fez com o peixe). Enquanto a distinção entre dono e guardião é igualmente relevante para o português, o termo predominante parece claramente ser animais de companhia e não, por exemplo, mascote.

Preciosismos linguísticos à parte, há aqui uma questão de natureza moral. Hal Herzog acha que a realidade é a realidade e não vale a pena pintá-la de cor-de-rosa. Mas será que é isto que os activistas pretendem, ou querem propor uma alteração de terminologia a ser seguida por uma alteração de prática?
Somos tanto donos dos nossos animais de companhia como somos de uma bicicleta ou de uma cadeira?

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Comer ou não comer?

O principio das 5 Liberdades estabelece que para estar bem, um animal deve estar livre de fome e de sede. É óbvio – quem põe em causa a importância disto para o bem-estar animal? Mas, como qualquer afirmação simplificada, está aberta à interpretação. 

Animais de diferentes espécies têm hábitos diferentes de alimentação natural, moldados pela seleção natural e representando adaptações diferentes a um ambiente particular. Um herbívoro em pastejo pode gastar uma grande proporção de seu período ativo a comer de facto, estilo cortador de relva. Outros herbívoros são browsers, dividindo seu tempo entre a procura de alimentos particularmente nutritivos e a ingestão deles. Outros ainda acumulam comida para uso posterior. Em todos os casos, um animal pode ter mais ou menos sucesso em encontrar alimentos. É talvez mais evidente no caso dos predadores, que terão que detectar, captar, atacar e matar uma presa, a fim de garantir uma refeição. (Na verdade, esse é um dos casos em que realmente faz sentido falar de uma refeição – um termo pouco relevante no caso de uma vaca ou um cavalo, quando deixados de se alimentar segundo a sua natureza.) 

Padrões de alimentação naturais à parte, a forma como os animais em cativeiro comem muitas vezes é determinada pela forma como eles são alimentados. No caso de alguns animais de produção, crescem tão rapidamente ou produzem tanto que a sua alimentação é limitada apenas pela sua capacidade de ingerir e digerir. Este é o caso de frangos de engorda e vacas leiteiras no pico da lactação (e estas ultimas mesmo assim podem não conseguir comer o suficiente). Fornecendo uma dieta concentrada sem restrição (ad libitum) vai, porém, tornar a maior parte dos animais obesos. E, assim como nos seres humanos, a obesidade leva a problemas de saúde secundários - a razão pela qual existe agora uma discussão veterinária e ética sobre a obesidade em animais de companhia como cães e gatos. Recentemente, as autoridades suecas de protecção animal ameaçaram prender um cão demasiado obeso, e para manter o seu cão, os donos têm que o sujeitar a um controle de saúde e peso.  

Outro grupo de animais que, se vivem o tempo suficiente, desenvolve problemas de peso são os animais de laboratório. Principalmente por razões práticas, é habitual dar comida ad libitum a ratos de laboratório. É a maneira mais conveniente de assegurar que cada animal recebe o que necessita (mesmo que seja à custa de alguns, ou mesmo a maioria deles, receber mais do que deveriam). Em alguns estudos de aprendizagem, os animais recebem uma recompensa de alimento, após completar com sucesso a tarefa. Naturalmente, uma recompensa de alimento é vista apenas como uma recompensa se o animal está motivado para comer. Se alguém me oferece uma maçã quando eu acabei de terminar um almoço de sopa, prato e sobremesa, não vou estar particularmente interessada - mas três horas mais tarde posso alegremente desembolsar dinheiro para pagar a mesma maçã. Por isso, é habitual restringir a quantidade de alimento fornecido aos animais em estudos de aprendizagem e memória. Muitas vezes recebem a quantidade de comida que irá mantê-los em 80% do peso de um animal semelhante alimentado ad libitum. No caso dos roedores de laboratório, o alimento pode ser dado uma ou duas vezes por dia, e quando terminar não terão mais até a próxima refeição. Quando aplicamos esses protocolos no laboratório, os nossos animais estão sem comida por algumas horas por dia.  

Esta é uma violação do paradigma das 5 Liberdades? Um problema de bem-estar animal? Será diferente da situação da escola, onde as crianças não podem petiscar na sala de aula e só podem comer durante as pausas do meio da manhã, almoço e meio da tarde? 

No caso de animais de laboratório, alimentação ad libitum pode de facto ser um problema científico. "Roedores ‘control’ do laboratório são metabolicamente mórbidos", declarou Mark Mattson e colegas num artigo scientífico em 2009, argumentando que a obesidade dos animais reduz a validade científica da investigação. Se defendemos que a aceitabilidade ética da experimentação animal depende, em parte, do benefício que ela proporciona, reduzindo o benefício é uma questão ética e, consequentemente, como os animais são alimentados também se torna uma questão de relevância ética. Claro que isto é uma consideração do ponto de vista completamente humano. Mas, no caso de animais de companhia, há um verdadeiro conflito de interesses para o próprio animal. O mesmo cão tem um interesse imediato na obtenção de um petisco da mesa ou uma porção extra da lata. Mas tem também um interesse de longo prazo, em não desenvolver diabetes ou problemas articulares. 

Os seres humanos podem ser capazes de fazer uma escolha consciente entre favorecendo interesses imediatos ou a longo prazo (embora longe de todos consigam seguir na prática à mesma decisão), mas não podemos perguntar aos animais a sua preferência. Sendo responsáveis por eles temos, nós, que fazer a escolha. Qual será a sua?

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